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  • Foto do escritorMarcelo Falchi

Como foi feito o estudo brasileiro que trouxe as primeiras evidências clínicas do uso da DMT no tratamento da depressão e do suicídio



Resumo: O Centro Avançado de Medicina Psicodélica (CAMP) da UFRN, publicou as primeiras evidências clínicas do efeito antidepressivo e antissuicida da DMT inalada no mundo. Diante dos desafios de implementar terapias de longa duração no sistema de saúde público, a terapia com DMT administrada por via não invasiva (parenteral inalada) e a curta duração da experiência psicodélica (10 a 20 minutos) surge como uma alternativa viável. Esta abordagem pode não só aumentar o acesso aos tratamentos psicodélicos, mas também pode representar uma possibilidade realista para o SUS brasileiro, considerando sua eficiência em termos de custo e tempo. Neste artigo, o psiquiatra Marcelo Falchi, do CAMP, fala sobre as investigações de fase I e II e as conclusões que mostram os potenciais efeitos da DMT no tratamento de questões como depressão e suicídio.


 

No vibrante cenário da ciência psicodélica, o Centro Avançado de Medicina Psicodélica (CAMP) se destaca como um farol de inovação na pesquisa psicodélica. O CAMP é dirigido pelo Prof. Dr. Dráulio Barros de Araújo e está ligado ao Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).


Liderados pelo professor, embarcamos numa expedição de neurociências e medicina psicodélica rumo aos antípodas da mente desvelados pela N,N-dimetiltriptamina (DMT), como gostamos de pensar. Nessa expedição existem várias frentes: da química à clínica, e é sobre esta última – dos efeitos antidepressivos da DMT – que vamos tratar neste texto.


DMT, uma triptamina psicodélica naturalmente presente em pequenas quantidades no corpo humano (Barker et al., 2012), provoca alterações significativas na consciência quando administrada por via parenteral, como por inalação (fumada ou vaporizada) ou injeção intramuscular, por exemplo. Essas mudanças incluem alterações visuais e auditivas, emoções intensas, insights profundos e experiências místicas, resultando em uma experiência psicodélica potente, mas de curta duração (Strassman et al., 1994), algo em torno de minutos para a DMT (vs. 6h para a psilocibina ou 12h para o LSD, por exemplo). A função endógena da DMT permanece sendo um tópico em investigação (Barker et al., 2012). 



Estrutura 2D da molécula de DMT, uma triptamina psicodélica naturalmente presente em pequenas quantidades no corpo humano.



A triptamina ingerida oralmente é inativada por causa da ação da enzima monoamina oxidase (MAO) no fígado. Para ativar os seus efeitos sobre a mente e o corpo, os povos indígenas sul-americanos utilizam no chá de Ayahuasca uma combinação da DMT com inibidores da monoamina oxidase (iMAO), prolongando assim os efeitos da bebida, que podem incluir também náuseas e vômitos (purga, no vocábulo tradicional) (Maia et al., 2023).


Evidências clínicas recentes indicam que a ayahuasca pode ter efeitos terapêuticos, especialmente em transtornos de humor. Palhano-Fontes e colaboradores (2019) revelaram que a ayahuasca apresenta resposta rápida e efeitos antidepressivos duradouros em casos de depressão resistente ao tratamento, uma condição complexa de se tratar. Todavia, a experiência longa (~4h), associada a efeitos fisiológicos como a purga e o potencial de interação farmacológica com antidepressivos tradicionais (especialmente pela presença das betacarbolinas que agem como iMAO), limitam seu potencial de aplicação clínica.


Nossa expedição [1] objetiva a investigação clínica da aplicação por via inalatória da DMT. Com essa premissa, desenhamos e executamos dois ensaios clínicos (fases I/IIa), em Natal-RN, para testar a segurança, a tolerabilidade, definir doses e determinar a eficácia da DMT para o tratamento da depressão. Nosso objetivo é compreender a relação entre os efeitos psicodélicos rápidos da DMT e a melhoria em sintomas depressivos, ampliando o espectro de terapias apoiadas por psicodélicos, e também seu público-alvo.


Em nossa investigação de fase I (Falchi-Carvalho et al., 2023) recrutamos 27 voluntários saudáveis para receber uma primeira dose mais baixa e uma segunda dose mais alta, variando de 5 a 60 mg, de DMT por via inalatória. Cada voluntário participou de uma sessão individual recebendo as duas doses em um único dia. Esta foi a primeira vez que um ensaio clínico investigou o uso inalatório de DMT.


Assim, investigamos as experiências subjetivas (em termos de intensidade, valência afetiva e aspectos fenomenológicos), os efeitos fisiológicos (como pressão arterial, frequência cardíaca, frequência respiratória, saturação de oxigênio no sangue e temperatura corporal), marcadores bioquímicos (exames de função hepática, renal e funções metabólicas) e os eventos adversos durante os efeitos agudos e pós-agudos da DMT por algumas semanas depois da dosagem). 


A administração de DMT resultou em um aumento dose-dependente na intensidade, na valência e nas classificações perceptuais (majoritariamente visuais) das experiências. Observamos um incremento leve, transitório e autolimitado na pressão arterial e na frequência cardíaca. Não foram detectadas alterações nos biomarcadores sanguíneos relacionados à segurança, e não ocorreram eventos adversos graves. Além disso, a DMT, de maneira proporcional à dose, aprimorou as experiências subjetivas e a valência afetiva positiva, ou seja, participantes relataram experiências que se tornaram mais intensas e positivamente valiosas com emoções mais profundas e gratificantes com doses mais altas. 


Após a verificação da segurança e a definição da dose com os voluntários saudáveis, prosseguimos com a investigação de fase II recrutando 14 pacientes com depressão em tratamento com antidepressivos convencionais para um estudo aberto (quando pacientes e pesquisadores sabem qual a substância administrada, e não há placebo), onde cada um recebeu uma dose mais baixa (15 mg) e depois uma dose mais alta (60 mg) de DMT em uma sessão de dosagem em um único dia. Avaliamos a gravidade da depressão (utilizando a Escala de Avaliação de Depressão de Montgomery-Asberg, MADRS), a percepção subjetiva de doença (utilizando o Questionário de Saúde do Paciente-9, PHQ-9) e o índice de suicidalidade (utilizando a Escala de Beck para Ideação Suicida, BSI) até três meses após a sessão de dosagem. 


O resultado preliminar dos 6 primeiros pacientes até 1 mês após a sessão de dosagem está disponível em pre-print (Falchi-Carvalho et al., 2024). Observamos reduções significativas nas pontuações de depressão pela MADRS, considerada uma medida padrão da severidade da depressão, e PHQ-9, que mede a percepção subjetiva de doença, tão logo quanto no dia seguinte (D1) e até o primeiro mês (M1) analisado. Em uma semana (D7), 83% (5) dos pacientes responderam ao tratamento, com 67% (4) alcançando a remissão do quadro [2], o que significa que não apresentavam mais depressão. Em M1, 67% (4) mantiveram resposta e 50% (3) mantiveram remissão. Inicialmente, 4 pacientes apresentavam alto risco de suicídio segundo a escala BSI (>6). Após uma semana de tratamento, esse número caiu para dois, e após um mês, apenas um paciente manteve alto risco. Os escores medidos pela PHQ-9 apresentaram redução que se espelhou à MADRS (gráficos abaixo), com menores pontuações indicando percepção de mais saúde. Estas são as primeiras evidências clínicas do efeito antidepressivo e antissuicida da DMT inalada no mundo.



A) As pontuações da MADRS diminuem significativamente a partir de um dia, permanecendo significativamente baixas até um mês após a sessão de dosagem. B) Taxas de resposta e remissão ao longo do tempo. C) As pontuações da PHQ-9 apresentam redução significativa em um dia, permanecendo significativamente baixas até 1 mês. D0 = dia de dosagem, D1 = dia 1, D7 = dia 7, D14 = dia 14, M1 = mês 1.  p < 0,05 p < 0,001; **p < 0,0001 (disponível em Falchi-Carvalho et al., 2024).



Os ensaios ocorreram no Centro de Pesquisa Clínica Psicodélica (parte do CAMP) no Hospital Universitário Onofre Lopes da UFRN. A sala utilizada para o estudo, que compõe o setting, foi decorada com obras de arte e móveis aconchegantes, lembrando um lounge contemporâneo de estilo boho, completo com tons acolhedores, iluminação suave, LEDs de cores variáveis e equipamentos médicos integrados ao ambiente (imagens abaixo).



(Esquerda) Equipe desenhando o protocolo de dosagem. Em sentido horário no primeiro plano: Isabel Wiessner, Marcelo Falchi, Handerson Barros, Sophie Laborde, Flávia Arichele, Raissa Almeida e Rosana Macedo. (Centro) Em sentido horário no primeiro plano: Fernanda Palhano, Marcelo Falchi, Handerson Barros, Sophie Laborde, Isabel Wiessner, Flávia Arichele, Raissa Almeida e Rosana Macedo. (Direita) Centro de Pesquisa Clínica Psicodélica (parte do CAMP), no Hospital Universitário Onofre Lopes da UFRN.



Durante a dosagem, os participantes permaneciam reclinados em uma poltrona confortável ouvindo a músicas elaboradas para o estudo pelo artista Raphael Egel [3], que apresenta uma mistura de melodias eletrônicas, harmônicas, ambiente e chill-out, projetadas para orientar a experiência e promover uma atmosfera de segurança e tranquilidade, parte importante de uma terapia apoiada por psicodélicos.



Playlist "DMT Project", do artista Raphael Egel, com músicas elaboradas especialmente para o estudo.


Nosso modelo terapêutico incluiu: a) uma rigorosa avaliação médica e psiquiátrica de triagem do voluntário; b) uma sessão de preparação do voluntário com a equipe de psicologia para estabelecer o vínculo (rapport), expectativas positivas e realistas sobre o tratamento, treino de estratégias para gerenciamento de experiências desafiadoras, acordos e contratos, além de informar e tirar dúvidas; c) duas sessões de dosagem em um único dia (D0), com integração imediata, acompanhamento multiprofissional, coleta de dados e monitorização fisiológica; d) duas sessões de integração posteriores para fornecer apoio psicológico, facilitar a expressão e interpretação de experiências e criar conexões com a vida cotidiana; e) cinco retornos médicos com a equipe de psiquiatria para suporte médico, acompanhamento e coleta de dados clínicos. 


Um estudo exploratório recente da Universidade Yale sobre os efeitos antidepressivos da DMT intravenosa (IV) em 7 pacientes com depressão (D'Souza et al., 2022) também encontrou resultados positivos, relatando um tamanho de efeito moderado (g de Hedge = 0,75) na escala de avaliação de depressão de Hamilton um dia após os pacientes terem recebido a DMT. Este estudo, que não incluiu um ambiente terapêutico especializado nem suporte psicológico ou acompanhamento, teve um impacto limitado em termos de resposta e remissão, mas ainda significativo. Em contraste, nosso estudo (Falchi-Carvalho et al., 2023 e 2024), que combinou intervenções psicodélicas com suporte psicológico em um ambiente cuidadosamente preparado, demonstrou um impacto substancialmente maior (g de Hedge = 4,70). 


Esta disparidade destaca o potencial para efeitos terapêuticos aumentados quando intervenções psicodélicas são combinadas com apoio psicológico em um ambiente cuidadosamente projetado para uma experiência psicodélica. A resposta superior observada pode ser devida à abordagem integrada (psiquiatria e psicologia vs. modelo unicamente biomédico) e fatores contextuais (setting preparado vs. ambiente hospitalar), embora fatores como métodos de administração (inalação vs. injeção), dosagens e perfil dos pacientes (DMT como terapia adjuvante ao uso de antidepressivos orais vs. paciente sem uso de outros psicofármacos) também sejam relevantes.


Substâncias com efeitos antidepressivos de ação rápida, como a DMT, apresentam efeitos rápidos e sustentados que se alinham ao paradigma emergente da psiquiatria de intervenção. Esta abordagem multidisciplinar em saúde mental abre caminho para novas possibilidades de tratamento. Uma das vantagens mais significativas observadas no uso de psicodélicos, como a DMT, é a redução imediata de ideação suicida, um aspecto crucial para pacientes em crise. Enquanto nossos estudos destacam a eficácia da DMT no tratamento da depressão, estamos igualmente comprometidos em desenvolver uma terapia não apenas eficaz, mas também prática e acessível – ou seja, eficiente.


Minha experiência pessoal de mais de 600 horas como psiquiatra em uma imensa frente de investigação sobre neurociências e LSD, liderada pelo Professor Dr. Luís Fernando Tófoli na UNICAMP, nos permitiu explorar profundamente as experiências psicodélicas, que com LSD podem durar de 8 a 12 horas (Wiessner et al., 2023). Contudo, reconhecemos os desafios de implementar terapias de longa duração no sistema de saúde público, especialmente considerando a necessidade de envolver múltiplos profissionais por períodos extensos, o que seria inviável diante dos recursos limitados do SUS.


Diante desses desafios, a terapia com DMT administrada por via não invasiva (parenteral inalada) e a curta duração da experiência psicodélica (10 a 20 minutos) surge como uma alternativa viável. Esta abordagem pode não só aumentar a acessibilidade aos tratamentos psicodélicos, mas também pode representar uma possibilidade realista para o SUS brasileiro, considerando sua eficiência em termos de custo e tempo. Essa inovação pode ter o potencial de expandir a maneira como abordaremos o tratamento psicodélico na saúde pública.


Embora os resultados sejam promissores, o tratamento ainda possui caráter experimental, o que significa que está sujeito a mudanças e adaptações ponto-a-ponto. Estudos como o nosso, embora com número relativamente pequeno de participantes, possibilitam o desenvolvimento de estratégias, técnicas e acompanhamento apropriados para uma possível futura terapia psicodélica clinicamente viável no SUS. Cumpre notar que substâncias psicodélicas não são permitidas na prática clínica; seu uso é restrito ao contexto de pesquisa e depende de rigorosa aprovação dos conselhos de ética e autoridades de vigilância.


Nossa visão é clara: queremos estar na vanguarda da medicina psicodélica, contribuindo para um mundo onde opções de tratamento mais eficazes e humanizados estejam disponíveis para aqueles que sofrem com transtornos mentais. No CAMP, acreditamos que a ciência pode iluminar o caminho para a cura e estamos comprometidos com essa jornada.



Notas:

[1] A "Expedição DMT de A a Z", sob a liderança do Prof. Dráulio Araújo no Centro Avançado de Medicina Psicodélica (CAMP), abrange um amplo espectro de estudos. Esta iniciativa inclui desde a investigação botânica da Jurema, uma planta nativa da caatinga nordestina, até processos de extração da DMT. Além disso, o projeto engloba experimentos com animais e avança em pesquisas nas áreas de neurociências e clínica, proporcionando uma abordagem holística ao estudo da DMT.

[2] A “resposta” a um tratamento é definido como uma queda superior a 50% dos escores iniciais; e “remissão” quando a pontuação total é inferior a 10 pontos para a MADRS (escala de 0 a 60 pontos, com pontuações maiores indicando maior severidade de depressão). 

[3] Você pode ouvir a algumas músicas do estudo em www.raphael-egel.com 



Autor:



Referências:  

  1. Strassman, R.J., Qualls, C.R., Uhlenhuth, E.H., Kellner, R., 1994. Dose-response study of N,N-dimethyltryptamine in humans. II. Subjective effects and preliminary results of a new rating scale. Arch. Gen. Psychiatry 51, 98–108.

  2. Barker SA, McIlhenny EH, Strassman R. A critical review of reports of endogenous psychedelic N, N-dimethyltryptamines in humans: 1955-2010. Drug Test Anal. 2012;4:617–35.

  3. Maia LO, Daldegan-Bueno D, Wießner I. Ayahuasca’s therapeutic potential: What we know–and what not. European. 2023.

  4. Palhano-Fontes F, Barreto D, Onias H, Andrade KC, Novaes MM, Pessoa JA, et al. Rapid antidepressant effects of the psychedelic ayahuasca in treatment-resistant depression: a randomized placebo-controlled trial. Psychol Med. 2019;49:655–63

  5. Falchi-Carvalho M, Wießner I, Silva SRB, O Maia L, Barros H, Laborde S, et al. Safety and tolerability of inhaled N,N-Dimethyltryptamine (BMND01 candidate): A phase I clinical trial. Eur Neuropsychopharmacol. 2023;80:27–35.

  6. Marcelo Falchi-Carvalho, Handersson Barros, Raynara Bolcont, Sophie Laborde, Isabel Wießner, Sérgio Ruschi B. Silva, Daniel Montanini, et al.. The antidepressant effects of vaporized N,N-Dimethyltryptamine: a preliminary report in treatment-resistant depression. medRxiv 2024.01.03.23300610; doi: https://doi.org/10.1101/2024.01.03.23300610

  7. D’Souza DC, Syed SA, Flynn LT, Safi-Aghdam H, Cozzi NV, Ranganathan M. Exploratory study of the dose-related safety, tolerability, and efficacy of dimethyltryptamine (DMT) in healthy volunteers and major depressive disorder. Neuropsychopharmacology. 2022;47:1854–62.

  8. Wießner I, Falchi M, Daldegan-Bueno D, Palhano-Fontes F, Olivieri R, Feilding A, B Araujo D, Ribeiro S, Bezerra Mota N, Tófoli LF. LSD and language: Decreased structural connectivity, increased semantic similarity, changed vocabulary in healthy individuals. Eur Neuropsychopharmacol. 2023 Mar;68:89-104. doi: 10.1016/j.euroneuro.2022.12.013. Epub 2023 Jan 19. PMID: 36669231.


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