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  • Foto do escritorJoice Cruz Jatobá

Como a ayahuasca afeta a cognição humana?

Atualizado: 19 de ago. de 2023



Resumo: Através de uma revisão dos estudos já publicados sobre ayahuasca, investigou-se os efeitos da bebida de origem indígena em relação aos aspectos psicológicos e cognitivos em seres humanos. Dessa forma, foi possível observar que, após a ingestão do chá, houve melhora de foco no tempo presente e na capacidade de sentir emoções e sentimentos sem se apegar a eles, com efeitos sustentados por meses. A bebida também demonstrou potencial de influência sobre a regulação emocional, memória, percepção e habilidades de alternância entre estratégias cognitivas.


 

Durante a pandemia, em 2021, pude participar de um Curso de Verão em Psicobiologia, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – o que só foi possível devido ao regime de distanciamento social que permitiu que eventos como esse fossem realizados virtualmente. Ao final do curso, me percebi ainda mais fascinada pelos processos mentais, as modulações de comportamentos e os efeitos psicofarmacológicos provocados pelas mais variadas substâncias. Já havia acompanhado algumas palestras, também em cursos de extensão em formato remoto oferecidos por universidades do país inteiro durante a pandemia, mas nesse Curso de Verão tive a oportunidade de entrar em contato com diversos pesquisadores e linhas de pesquisa, tendo uma delas chamado a minha atenção de forma especial: o uso de substâncias psicodélicas e suas implicações sobre a neurociência e questões de saúde mental. Isso me pareceu um universo fascinante e com potencial promissor, tendo em vista as pesquisas já desenvolvidas.


No mesmo ano, iniciava também meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e os recursos eram limitados na universidade em que cursava biomedicina, a Universidade Federal de Uberlândia (UFU), devido aos impactos da pandemia e os intensos cortes de financiamento da educação. Portanto, optei por desenvolver uma revisão de escopo com método sistemático: seria a oportunidade perfeita para explorar o campo da ciência psicodélica dentro das condições às quais estava submetida. Para trocar ideias e investigar sobre a factualidade e relevância desse projeto, entrei em contato com um pesquisador que conheci durante o curso na Unifesp, e que depois viria a conhecer como um dos idealizadores do portal Ciência Psicodélica, o psicólogo Dimitri Daldegan-Bueno, que participou como coorientador desse TCC.


Dentre as diversas substâncias psicodélicas, a ayahuasca foi a que mais me encantou através de relatos pessoais e publicações acadêmicas, uma vez que eu nunca tive uma experiência com a bebida. Entretanto, quanto mais estudava sobre a ayahuasca, mais me sentia próxima das minhas origens, da minha ancestralidade, indígena e preta. Como uma mulher preta de pele clara, nunca fui estimulada a conhecer minha própria história ancestral, pelo contrário, a cada dia fui instigada a construir uma história nova e diferente das vivências difíceis que ouvi dos meus familiares. Desejando ir contra essa maré de apagamento e embranquecimento, decidi estudar algo que permitisse me conectar a histórias que até então não tive a chance de vivenciar, mas que admiro e respeito.


A ayahuasca é uma bebida psicodélica de origem amazônica produzida a partir da combinação da videira Banisteriopsis caapi com várias plantas, em particular a Psychotria viridis.



O trabalho teve início com a construção da pergunta de revisão, a partir da qual procuramos identificar quais segmentos na literatura científica sobre a ayahuasca ainda apresentavam lacunas investigativas, ou seja, quais perguntas ainda não haviam sido respondidas. Optamos por investigar as evidências disponíveis acerca dos efeitos da ayahuasca sobre a cognição, uma vez que observamos uma crescente em publicações sobre o tema, porém, sem que houvesse trabalhos que apresentassem panoramas mais amplos sobre esses efeitos.


Através de uma busca em variadas bases de dados científicas, seguida de uma análise sistemática dos artigos encontrados, identificamos estudos quantitativos acerca dos efeitos da ayahuasca sobre funções cognitivas como memória, atenção, linguagem e função executiva, além de processos psicológicos relacionados com as capacidades de atenção plena, ou seja, o direcionamento da atenção à experiência vivenciada momento a momento, e descentralização, sendo essa a habilidade de sentir emoções e sentimentos desafiadores sem se identificar enfaticamente com os mesmos. Foram identificados 507 registros, que passaram por duas etapas de triagem paralelas e “cegas”, ou seja, dois pesquisadores analisando independentemente os artigos, sem que um soubesse sobre a avaliação do outro. No final, a análise dos pesquisadores foi comparada, resultando na inclusão de 16 artigos.


Esses 16 artigos revisados datam de 2013 a 2021, sendo 9 deles publicados entre 2020 e 2021, o que denota o aumento de pesquisas que têm como alvo investigativo ayahuasca e cognição, um fato interessante dado o momento no qual se observa um avanço no debate público e acadêmico relacionado a substâncias psicodélicas, o qual por vezes tem sido chamado de “renascença psicodélica”.


Dentre os 16 artigos revisados, 14 deles avaliaram participantes de comunidades ayahuasqueiras com experiência prévia com a bebida. Em 15 estudos os indivíduos foram expostos a ayahuasca em sua forma líquida e o volume administrado era semelhante ao observado em cerimônias ritualísticas com ayahuasca (≈60-100ml). É importante ressaltar que a maioria dos artigos apresentaram dados escassos sobre as intervenções, por vezes informando apenas o volume administrado ou a quantidade de DMT presente em determinado volume da bebida, sem que ficasse claro a dosagem a qual cada indivíduo foi submetido.


Identificamos 7 artigos que avaliaram os efeitos da ayahuasca sobre as capacidades de atenção plena (mindfulness), que tem como pilar a habilidade de alocação de atenção, foco no momento presente e ausência de julgamento sobre as situações ou pensamentos presentes. Dentre os artigos revisados, 6 apontam para efeitos benéficos da ayahuasca sobre capacidades de mindfulness, incluindo observação, descrição, ação consciente, não julgamento e não reação. As avaliações realizadas durante os efeitos agudos e no dia subsequente à sessão com ayahuasca demonstraram aprimoramento dessas habilidades em comparação às avaliações anteriores à ingestão da bebida. Além disso, esse aprimoramento foi sustentado por até 2 meses após a sessão com ayahuasca (Sampedro et al., 2017), o que sugere um efeito duradouro sobre esses aspectos.


Outro domínio bastante presente nos trabalhos revisados foi a habilidade de descentralização, investigada em 7 artigos. A capacidade de descentralização se baseia na adoção de uma postura de distanciamento em relação ao objeto observado, sendo esse algo externo e material ou mesmo os próprios pensamentos e ruminações internas do indivíduo. Em 6 artigos foram observadas melhorias relativas à capacidade de descentralização, com um artigo indicando aprimoramento sustentado por até 12 meses após a participação em retiros com ayahuasca (González et al., 2020).


Artigos analisados no estudo apontam para efeitos benéficos da ayahuasca sobre capacidades de mindfulnes (incluindo observação, descrição, ação consciente, não julgamento e não reação) e de descentralização.



Quanto à flexibilidade cognitiva, ou seja, a capacidade de alternar estratégias cognitivas e comportamentais em resposta a demandas do ambiente, aspecto investigado em 6 dos artigos revisados, houve tanto aumento quanto diminuição de pensamento convergente e divergente. É importante destacar que o conceito de pensamento convergente denota a produção de múltiplas ideias a partir de uma premissa; enquanto o pensamento divergente restringe essa produção às ideias mais promissoras para a questão proposta. Por outro lado, um estudo apontou para diminuição da evitação experiencial vivenciada por indivíduos em processo de luto, ou seja, diminuindo a indisposição do indivíduo em permanecer em contato com experiências desafiadoras, possibilitando maior aceitação quanto ao enfrentamento desses processos relacionados ao luto.


Apesar da ausência de efeitos prejudiciais moderados ou graves sobre a flexibilidade cognitiva, um estudo aponta para diferença de desempenho em algumas medidas de planejamento, inibição e impulsividade, que parecem ser seletivamente prejudicadas em indivíduos que tenham bebido o chá menos de 1x/semana por 3 anos, porém sem prejuízo para indivíduos com maior frequência de uso da ayahuasca. Entretanto, esses resultados são pouco corroborados na literatura e apontam para uma escassez de evidências sobre esses temas e a necessidade de novas investigações que empreguem metodologias e delineamentos que nos permitam compreender com maior clareza como a ayahuasca afeta a flexibilidade cognitiva em indivíduos humanos.


As evidências revisadas apontam também para melhora na autopercepção dos indivíduos quando submetidos a uma tarefa de performance de discurso durante os efeitos agudos da ayahuasca; além da diminuição de generalidade excessiva em memórias autobiográficas, sendo essa supergeneralização demarcada pela prevalência de memórias gerais e menos específicas ou detalhadas sobre momentos desafiadores ou traumáticos para o indivíduo, um aspecto de grande impacto em processos depressivos (Dalgleish et al., 2007; Cunha et al., 2020). Contudo, é importante ressaltar que alguns estudos indicam ausência de efeito da ayahuasca sobre o reconhecimento de emoções em expressões faciais e sobre a distorção de percepção do tempo em relação a estímulo sonoro, enquanto um artigo sugere prejuízo seletivo da memória de trabalho em bebedores ocasionais. Entretanto, esses dados são provenientes de poucos estudos, que contaram com amostras limitadas e que, portanto, devem ser interpretados com cautela e atenção às suas limitações.


Diante desses achados, concluímos que a ayahuasca apresenta efeitos sobre aspectos cognitivos e psicológicos, com aparente padrão de aprimoramento das capacidades de atenção plena e descentralização, aspectos observados a curto e médio prazo (24 horas a 12 meses após a experiência). Ressaltamos que há evidências modestas sobre efeitos da ayahuasca na memória, percepção, regulação emocional e aspectos de flexibilidade cognitiva, o que aponta para importância de investigações mais robustas sobre essas influências provocadas pelo chá. Sugerimos ainda, tendo em vista uma perspectiva biopsicossocial acerca dos efeitos desencadeados pela ayahuasca, que os trabalhos futuros possam enriquecer esse debate investindo em delineamentos e métodos adequados às investigações propostas, além de destaque para dados sobre as dosagens e protocolos metodológicos implementados, levando em consideração conceitos de set e setting que podem impactar expressivamente a experiência psicodélica.


Autora


Referências

  • CUNHA, S. I. F. L. et al. Memória autobiográfica e psicopatologia-uma revisão sistemática. 2020.

  • DALGLEISH, T. et al. Reduced specificity of autobiographical memory and depression: the role of executive control. Journal of Experimental Psychology: General, 136, n. 1, p. 23, 2007.

  • GONZÁLEZ, D. et al. Therapeutic potential of ayahuasca in grief: a prospective, observational study. Psychopharmacology (Berl), 237, n. 4, p. 1171-1182, Apr 2020.

  • JATOBÁ, J. C. Efeitos da ayahuasca sobre a cognição: uma revisão sistemática de estudos em humanos. 2022. 64 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Biomedicina) - Instituto de Ciências Biomédicas, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2022.

  • SAMPEDRO, F. et al. Assessing the psychedelic “after-glow” in ayahuasca users: Post-acute neurometabolic and functional connectivity changes are associated with enhanced mindfulness capacities. International Journal of Neuropsychopharmacology, 20, n. 9, p. 698-711, 2017.




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