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Uso de substâncias, Set e Setting

Atualizado: 21 de ago. de 2021

Autor convidado: Alexandre Pontual, PhD*


 



É fácil perceber que substâncias psicoativas não provocam necessariamente os mesmos efeitos em todos os indivíduos. Eu me lembro de quando meu grupo de amigos começou a beber álcool, e como alguns deles ficavam super engraçados quando bebiam, enquanto outros ficavam chatos demais. Em pouco tempo comecei a perceber também como um mesmo amigo, quando estávamos em grupo pequeno, ficava engraçado, e quando estávamos em grupos grandes (principalmente quando havia garotas no grupo) ficava insuportável. Com certeza eles perceberam algum tipo de padrão no meu comportamento também e, depois de algumas situações desagradáveis, finalmente fomos aprendendo a quem chamaríamos para cada contexto que haveria consumo de álcool.


Nos primeiros estudos controlados com substâncias psicodélicas também houve essa percepção. Notou-se rapidamente como uma mesma substância era capaz de gerar, em quantidades iguais, respostas completamente diferentes em diferentes indivíduos, e também em um mesmo sujeito em contextos diferentes. Com psicodélicos essas diferenças poderiam ser até mesmo diametralmente opostas: alguns sujeitos experimentavam o sentimento de contato com o divino e pertencimento ao paraíso, enquanto outros se viam cercados de sombras em agonias infernais. Nomearam essa percepção de set-setting theory, indicando que, além da droga, também deveriam ser levados em consideração a personalidade, expectativas e intenções do usuário (o que nomearam como set), e o contexto cultural, social e ambiental do uso (chamado de setting).



Uma mesma substância é capaz de gerar, em quantidades iguais, respostas completamente diferentes em diferentes indivíduos, e também em um mesmo sujeito em contextos diferentes.



Essa noção não é tão novidade para culturas com histórico de uso desse tipo de substâncias. O uso centenário de psicodélicos de certos povos indígenas é frequentemente relatado por pesquisadores junto a descrições de rituais e de contextos moldados especificamente para o uso daquela substância. Contextos com restrições, regras e rituais bem delimitados, e com o uso fora desses contextos sendo até mesmo mal visto. A ciência ocidental pôde contribuir para este campo trazendo a aplicação de métodos científicos para a observação da relação causa-efeito entre os componentes (ou variáveis) do set e setting e a experiência psicodélica do indivíduo.


Norman Zinberg, em 1984, no livro Drug, set and setting: the basis for controlled intoxicant use observou práticas e rituais desenvolvidos por usuários de diferentes drogas (incluindo heroína intravenosa) durante o fim da década de 1970, e relatou como usuários que planejavam a experiência antes do consumo da substância – incluindo qual tipo de comida e bebida deveriam estar presentes, quais tipos de atividade seriam executadas, se haveria pessoas presentes que não consumiriam a droga, entre outras questões – enfrentavam menos problemas decorrentes desse consumo do que pessoas que faziam uso de forma mais “espontânea”. Stanislav Grof, em 2005, após décadas de experiência, afirma que os resultados de terapia com psicodélicos são criticamente dependentes do set e do setting, sendo as substâncias em si apenas ferramentas, que podem ou não serem usadas de forma correta no contexto adequado.


Atualmente, essa noção é praticamente unânime entre pesquisadores do campo. Ido Hartogsohn afirma que “é difícil pensar em outro conceito tão fundamental e amplamente aceito no campo de pesquisa com psicodélicos como o de set-setting”. No Brasil, Edward MacRae amplia essa influência do contexto também para sanções sociais, preconceitos, valores, regras de conduta e até mesmo para a legislação vigente.



Norman Zinberg e seu livro Drug, set and setting: the basis for controlled intoxicant use.



As religiões ayahuasqueiras – isto é, as que utilizam ayahuasca em seus rituais – no Brasil são instruídas a fazerem entrevista, oral ou com auxílio de instrumentos, com novos membros antes de sua participação na cerimônia, de acordo com a resolução N.º 1 do CONAD de 25 de janeiro de 2010, que trata das normas e procedimentos compatíveis com o uso religioso da ayahuasca. Essa entrevista teria como objetivo verificar se há relatos de histórico de alterações mentais, presença de efeitos de álcool ou outro psicoativo e também para estimar o estado emocional do sujeito antes do uso da substância – ou seja, uma breve verificação do set. Essas religiões também se mostram preocupadas em garantir um setting de consumo adequado à suas crenças e valores. Assim, procuram elaborar rituais bem definidos, que consideram desde a posição dos móveis no espaço físico, como a ordenação de músicas e danças, a iluminação da sala e a postura do Mestre/Guia e auxiliares. Mesmo grupos ayahuasqueiros que não seguem preceitos de religiões ayahuasqueiras mais tradicionais podem dar grande importância ao setting, havendo seleção de músicas, cuidado com o conforto dos usuários e cuidado em haver presença de um guia, dentre outros cuidados.



Nas religiões ayahuasqueiras brasileiras geralmente há a preocupação em se avaliar o set (ex: por meio de entrevistas) antes das cerimônias e garantir um setting de consumo adequado (Imagem: xamanismo.com.br).



Para parte do meu doutorado, além de revisões e leituras da literatura científica da área, eu entrevistei bebedores de ayahuasca com diferentes níveis de experiência (pessoas que beberam uma vez só, pessoas que beberam algumas vezes na vida, pessoas que beberam dezenas, centenas e até pessoas que já beberam milhares de vezes), perguntando sempre sobre os contextos de consumo e como elas os relacionavam às suas experiências. Muitos dados interessantes foram levantados nessa parte da minha pesquisa, e eu gostaria de terminar esse texto compartilhando alguns deles. Chamo a atenção aqui para pontos que atualmente considero chaves no cuidado com o contexto para consumo de ayahuasca (e talvez de outros psicodélicos também):


  • Haver confiança na organização, no Mestre ou no Guia;

  • Se sentir acolhido e socialmente à vontade;

  • Ter recebido informações a respeito do ritual e da substância;

  • Compartilhar dos valores das práticas realizadas no ritual e da decoração (lembre que pode haver cantos, danças e rodas, defumação, rezas, estátuas, imagens, etc., dependendo do ritual);

  • Se sentir em ambiente protegido de situações perigosas;

  • Ter um local confortável para ficar, se sentar ou se deitar durante o tempo do ritual (que pode durar horas);

  • Ter um local acessível para ir ao banheiro ou vomitar.


É claro que pode ser diferente o que “se sentir acolhido” ou o que um “lugar confortável” significa para cada um. Por isso acredito não haver um contexto universalmente ideal, onde todas as pessoas se sentirão bem e ao qual todos os centros ayahuasqueiros deveriam sistematicamente aderir. Acredito que cabe ao sujeito se informar e com essas informações ser sincero consigo mesmo, procurando responder aos itens listados acima com base em seu próprio autoconhecimento.



 







*Alexandre Pontual é psicólogo com graduação sanduíche Brasil-Alemanha (UFES/Universität Tübingen). Atualmente, está terminando seu doutorado sanduíche (USP/Maastricht University, Holanda), elaborando uma escala para avaliação do setting de consumo de ayahuasca. É membro do ICARO (Interdisciplinary Cooperation for Ayahuasca Research and Outreach - UNICAMP) e do LePsis (Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicopatologia, Drogas e Sociedade - USP).



 


Referências


Brasil (2010). Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD). Resolução Nº 1 de 25 de Janeiro de 2010. Brasília, DF.


Grof, S. (2005). A brief history of transpersonal psychology. The Inner Door, 17(2), 1, 4–9.

Hartogsohn, I. (2013). The American Trip: Set, Setting, and Psychedelics in 20th Century Psychology. MAPS Bulletin Special Edition, 2013, 6-9.


MacRae, E. (2001). Antropologia: Aspectos Sociais, Culturais e Ritualísticos. In Seibel, S. D. & Toscano, A. (Eds.), Dependência de drogas (São Paulo: Atheneu).


Pontual, A. A. D., Corradi-Webster, C., Ramaekers, J, & Tófoli L. F. (2021). The influential components of the setting in the ayahuasca experience. (artigo submetido para publicação, March 10 2021).


Zinberg, N. E. (1984). Drug, set, and setting: The basis for controlled intoxicant use (New Haven: Yale University).


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