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Foto do escritorNathan Fernandes

Entrevista: Isabel Wiessner fala de estudo inédito com LSD no Brasil

Atualizado: 22 de mai. de 2023



O LSD foi uma das principais substâncias a guiar a primeira onda de pesquisas com psicodélicos no século 20. Sintetizado pelo químico suíco Albert Hofmann pela primeira vez em 1938, a partir da década de 1950, pesquisadores de todo o mundo passaram a poder solicitar à farmacêutica Sandoz o psicodélico que trazia novas perspectivas para a psiquiatria. Até que veio sua completa proibição em 1971.


Com o renascimento das pesquisas na área, no século 21, o holofote parece ter se voltado para substâncias como o MDMA e a psilocibina, que têm se mostrado promissoras nos tratamentos de transtorno de estresse pós-traumático e depressão. Já no Brasil, por conta da regulamentação que permite o uso religioso da ayahuasca, as pesquisas com o chá amazônico ganham cada vez mais fôlego.


Mas há quem mantenha o interesse pelo LSD aceso. É o caso da psicóloga Isabel Wiessner, autora do primeiro estudo brasileiro feito com LSD em seres humanos, desde os anos 1960, e o único controlado, duplo-cego e randomizado já feito no país.


O trabalho fez parte da tese de doutorado que a pesquisadora de origem alemã realizou na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob orientação do psiquiatra Luís Fernando Tófoli, coordenador do grupo ICARO (Interdisciplinary Cooperation for Ayahuasca Research and Outreach).


Isabel Wiessner, autora do primeiro estudo brasileiro feito com LSD em seres humanos, desde os anos 1960, e o único controlado, duplo-cego e randomizado já feito no país (Foto: Arquivo pessoal/Raphael Egel).



Fizeram parte do estudo 24 adultos saudáveis que já tinham tido contato prévio com o LSD. A ideia era investigar o potencial criativo e terapêutico da substância. Para isso, foram realizadas duas sessões com cada participante em dias diferentes (uma contendo placebo e outra com 50 microgramas de LSD). Em ambas as sessões, as pessoas faziam exercícios de memória, criatividade, concentração, linguagem e pensamento. Para completar o ciclo, passavam por mais uma bateria de testes de uma hora no dia seguinte às experiências. Os pesquisadores, então, compararam os resultados dos testes feitos sob influência do LSD e do placebo.


“Ter esse estudo com placebo, controlado, bem feito em laboratório, revela que o Brasil também é capaz de fazer pesquisa de nível internacional, comparado ao que vem sendo produzido em centros da Europa e dos Estados Unidos”, acredita Wiessner.

Os achados da pesquisa foram divulgados em cinco artigos diferentes:


1) “LSD e criatividade: aumento da novidade e pensamento simbólico, diminuição da utilidade e pensamento convergente”, publicado no Journal of Psychopharmacology;


2) “Baixa dose de LSD e corrente do pensamento: descontinuidade aumentada da mente, pensamento profundo e fluxo abstrato”, publicado no Psychopharmacology;


3) “LSD, loucura e cura: experiências místicas como possível elo entre modelo psicótico e modelo terapêutico”, publicado no Psychological Medicine.


4) “LSD, afterglow e ressaca: aumento da memória episódica e fluência verbal, diminuição da flexibilidade cognitiva”, publicado no European Neuropsychopharmacology.


5) “LSD e linguagem: diminuição da conectividade estrutural, aumento da similaridade semântica, alteração do vocabulário em indivíduos saudáveis”, a ser publicado em março de 2023 no European Neuropsychopharmacology.


O jornalista Nathan Fernandes, do portal Ciência Psicodélica, conversou com a pesquisadora Isabel Wiessner — que agora integra o grupo de pesquisa com DMT do neurocientista Dráulio de Araújo, no Instituto do Cérebro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte — para entender melhor os resultados do seu trabalho, além de refletir sobre a ciência brasileira, experiências místicas e microdoses.


Você realizou o primeiro estudo humano com LSD no Brasil depois da proibição. Qual é a importância desse estudo para a ciência psicodélica?


O estudo se iniciou numa época em que ainda havia poucos centros de pesquisa com psicodélicos, a partir de 2017. Tinha uns dois centros na Suíça, um em Londres, um em Praga, que estava começando, e uns dois nos EUA. Cinco centros mundiais talvez. Fora a pesquisa no Brasil. Aqui, tinha havido principalmente pesquisas com ayahuasca, que tem o uso religioso regulamentado — o que a coloca em uma categoria diferente do LSD, que ainda é mais difícil de investigar por causa da proibição.


Vejo que as contribuições do nosso estudo foram duas: a primeira foi para a ciência psicodélica do Brasil.


Acho que o estudo marcou realmente um ponto importante, porque foi o primeiro estudo controlado, duplo cego, randomizado com LSD feito no Brasil desde sempre, e o primeiro estudo com LSD desde a década de 1960. Isso é importante porque mostra que o Brasil não sabe investigar só a ayahuasca, mas também outras substâncias.


Neste momento, estão acontecendo várias pesquisas com psilocibina e outras substâncias, e vejo que, de certa forma, nosso trabalho pode ter ajudado esses outros centros de pesquisa a justificarem o desejo de estudar psicodélicos além da ayahuasca.

Acho ainda que ter esse estudo com placebo, controlado, bem feito em laboratório, revela que o Brasil também é capaz de fazer pesquisa de nível internacional, comparado ao que vem sendo produzido em centros da Europa e dos EUA.


E quais foram as principais dificuldades?


O principal foi que a gente não conseguiu implementar uma medida neurofisiológica. Eu gostaria muito de ter feito medidas com ressonância magnética, o que teria deixado o estudo com um nível ainda mais sofisticado, mas também difícil de conduzir, porque teríamos que organizar uma equipe maior, com mais dinheiro… Sria mais complicado. Então, optamos por um desenho mais simples para começar. Isso foi um problema comparado com estudos internacionais com técnicas avançadas.


Mas a vantagem foi que conseguimos focar mais nas medidas cognitivas, como criatividade, etc. Isso porque quando você mede a atividade cerebral, você tem muita coisa para analisar e não tem mais tempo para ler, compreender, aplicar testes criativos, entendê-los e analisá-los. Então, senti que tinha mais tempo para me dedicar às coisas mais subjetivas voltadas à percepção, e hoje sinto que esse é um ponto que não se saca de outras pesquisas. No final, o estudo se voltou mais para essa direção.


O objetivo principal do estudo foi avaliar o efeito do LSD sobre a criatividade, certo? De que modo foi possível avaliar isso?


Na verdade, no total, tivemos, pelo menos, uns cinco objetivos principais, que copondem aos artigos que foram publicados. O primeiro objetivo foi investigar esses dois modelos meio paradoxais: o modelo da psicose e o modelo terapêutico. Assim, investigamos os efeitos assemelhados à terapia, tipo o mindfulness e a sugestionabilidade; e os efeitos assemelhados à psicose, que, no nosso caso, foi a saliência aberrante como medida de psicose. E exploramos a existência de alguma conexão entre esses dois modelos.


O segundo objetivo foi esse de avaliar a criatividade, que vou detalhar mais à frente; já o terceiro, foi investigar os efeitos do LSD no fluxo de pensamento. Para isso, observamos como o pensamento muda no decorrer dos efeitos agudos e subagudos, então fizemos medidas tanto antes, quanto durante e um dia depois da administração da substância. Do mesmo jeito, avaliamos mudanças na linguagem no decorrer dos efeitos agudos e subagudos, então como a substância muda a estrutura, semântica e o vocabulário quando as pessoas contam histórias. E, por último, também investigamos os efeitos subagudos do LSD na cognição, aplicando uma bateria extensa de medidas de atenção, memória, fluência verbal, raciocínio abstrato, etc., no dia após os efeitos agudos.


A criatividade foi uma das partes que medimos. Ela foi dividida em vários testes para conseguirmos observar diferentes aspectos, já que não se trata de uma coisa que dá para medir com um único teste. É um conceito bem abstrato, nem os pesquisadores concordam muito bem qual seria o melhor jeito de medi-la. Por exemplo, existem questionários que perguntam sobre a personalidade criativa, dá para analisar quais conquistas criativas a pessoa conseguiu na vida, se ela tem uma vida criativa, mas a gente optou por aplicar testes de criatividade mais diretos. No total, foram cinco testes.


E como foram?


Os primeiros três foram tarefas de pensamento divergente, que está relacionado à criatividade, mas não é a mesma coisa. Depois, aplicamos testes de criatividade figural e verbal. No primeiro teste (dos três de pensamento divergente), os participantes eram apresentados a desenhos abstratos em preto e branco e tinham que interpretar o que poderia ser. Em outro teste, por exemplo, eles tinham que conectar figuras, criando conexões criativas. Outro teste foi achar usos criativos para um objeto comum do dia a dia, como uma faca, por exemplo.


Desenhos produzidos por voluntários durante a realização do estudo (Reprodução).


E, nos testes de criatividade verbal e figural, primeiro, os participantes tinham que terminar um desenho que já tinha alguns traços, depois tinham que criar metáforas em um tempo determinado. Com essa variedade, analisamos e medimos diferentes aspectos do processamento criativo.


Quais foram os resultados mais importantes?


A primeira coisa que queríamos medir eram os aspectos definidores da criatividade. Isso entendendo a criatividade como uma resposta que fosse tanto nova quanto útil, porque podem ter respostas que são muito novas, mas não são úteis, ou são sem sentido. Por outro lado, pode haver respostas muito úteis, mas que são pouco novas. Por exemplo, no teste que as pessoas veem linhas e precisam interpretá-las. No caso de linhas em zig zag, por exemplo, uma resposta muito útil, mas pouco nova, seria dizer que se trata de uma cadeia de montanhas. Já uma resposta muito nova e pouco útil seria interpretar aquilo como uma “memória visual imediata”, como de fato aconteceu. Certamente, ninguém nunca deu essa interpretação a um zig zag. Mas também não adianta para muita coisa.


Sob o efeito do LSD, vimos que houve uma grande quantidade de respostas muito novas, mas pouco úteis. A pessoa falou sem raciocinar uma conexão [desconexo] — ou, pelo menos, não dava pra entender.


A segunda coisa que descobrimos foi um efeito marginal: houve uma diminuição de elaboração nas respostas. Isso se mostrou na maioria dos nossos testes.


O que é elaboração, nesse caso?


Se eu interpretar esse zig zag como uma montanha, posso simplesmente falar que se trata de uma montanha e pronto. Não detalho a resposta. Agora, se eu falar que é uma montanha com neve, tem uma pessoa subindo, e atrás tem um sol, estou elaborando. Então, ganho pontos de elaboração a mais. Sob o efeito do LSD, comparado com placebo, essa elaboração diminuiu. E atribuimos isso a uma redução das capacidades cognitivas, já que a atenção diminui, as pessoas ficam muito distraídas, sem vontade de elaborar. Porque há tantos estímulos para processar que não há necessidade de elaborar. Essa redução da elaboração foi o segundo maior achado.


E o que mais além disso?


Também fizemos uma análise de linguagem, observando as distâncias semânticas. A ideia era achar o máximo de interpretações diferentes para um determinado desenho abstrato. E aí achamos que, na média, as distâncias semânticas aumentaram entre as repostas. Ou seja, isso pode significar que, em média, sob o efeito do LSD, as pessoas conseguiram realizar raciocínios mais diferentes, quando comparados ao placebo.


Esses foram os três principais achados [sob o efeito de LSD]: 1) maior novidade, junto com a diminuição da utilidade; 2) redução de elaboração; 3) aumento das distâncias semânticas.


Todas são medidas que já existiam na literatura, no contexto da criatividade. A diferença é que aplicamos um outro jeito de análise. Baseados nos dados, simplesmente olhamos o material, e vimos o que poderia ser interessante. E aí, quando aplicamos esse procedimento, achamos uma coisa que nunca achamos que pudesse aparecer: um aumento de pensamento simbólico sob o efeito do LSD. Esse foi o nome que demos para esse fenômeno.


O que vocês definem como pensamento simbólico?


Para ficar no exemplo do zig zag, essas linhas poderiam ser interpretadas de uma maneira concreta, figural, como montanhas, um objeto real; ou poderiam ser interpretadas como os altos e baixos de um casamento, seria uma interpretação que faria sentido, mas mais abstrata. Sob o LSD, esse pensamento simbólico aumentou. Não só nesse contexto, mas em quase todos os testes as pessoas acharam mais interpretações simbólicas, abstratas para os objetos.


Por que isso vale ser destacado?


Porque poderia ser uma maneira interessante de aplicar na terapia psicodélica, por exemplo. Esse pensamento abstrato, simbólico em um contexto terapêutico poderia ser usado pela pessoa para ver as coisas sob uma outra perspectiva.


Além disso, acho que esse potencial do LSD — especialmente em doses mais baixas como a que aplicamos, de 50 microgramas — pode ser interessante tanto no contexto terapêutico, quanto no âmbito individual, de abrir essa perspectiva diferente na forma de ver as coisas, possibilitando novos jeitos de pensar.


Na pesquisa, vocês também observaram a relação entre as experiências místicas e a saúde mental. De que forma os cientistas se aproximam dessas questões mais subjetivas?


Essa é a grande questão da psicologia: como medir questões mais subjetivas? Já temos alguns instrumentos bastantes elaborados, principalmente questionários com as perguntas relacionadas às experiências subjetivas mais comuns, que conseguem acessar razoavelmente essas percepções internas. No caso das experiências místicas, há um questionário que se chama Mystical Experience Questionnaire (ou “Questionário de Experiências Místicas”). Quando você olha esse questionário, percebe que muitas perguntas são ambíguas. Por exemplo, “a experiência foi tão intensa que não consigo descrever em palavras?”. É muito difícil entender quando marco uma pontuação alta nessa questão. Mas, quando você toma o psicodélico e depois lê essa pergunta, vai pensar que foi justamente isso que você sentiu. Então o questionário faz muito mais sentido para quem já teve a experiência. O mesmo vale para a atenção plena [mindfulness], que foi outra coisa que a gente mediu.


E o que mais vocês mediram?


Um outro construto que medimos para acessar esse efeito terapêutico foi a sugestionabilidade, que é a capacidade de responder a sugestões. E o que são sugestões? São propostas que podem ser dadas por uma pessoa, ou por mim mesma, a fim de influenciar nossa percepção, nosso comportamento, nossa cognição. Isso acontece muito em grande parte das relações entre profissionais de saúde e pacientes. Qualquer médico que apareça com um jaleco branco já vai influenciar as pessoas, essa figura tem um impacto muito grande. Infelizmente, muitos médicos ainda não estão cientes do quanto é importante essa presença e essa relação pessoal com a pessoa. E aí, o que o profissional falar pode ter um impacto sobre o paciente.


Isso deve aumentar sob o efeito dos psicodélicos, certo?


Sob o efeito dos psicodélicos, essa sugestionabilidade, essa capacidade de ouvir o que é sugerido, é muito aumentada. Qualquer coisa que for falada vai ser mais percebida como real. Para medir essa sugestionabilidade, por exemplo, nós lemos um texto, que era tipo “imagine que você está bebendo um copo de água fresca, agora sinta ela descendo na sua garganta, sinta o frescor dessa água”. E aí a pessoa avalia o quão real ela sentiu a água entrando na boca, comparado com quando ela bebeu água de verdade.


O que vimos é que sob o LSD, comparado com o placebo, essa experiência foi mais vívida, mais real. Isso tem uma certa capacidade terapêutica, porque qualquer coisa que um profissional de saúde disser em uma sessão com psicodélicos vai ser experienciado como mais real. Claro que, por isso, deve haver um cuidado para guiar a experiência. Mas isso mostra um potencial muito grande, porque, se aplicado corretamente, pode ser uma das ferramentas mais interessantes.


Em relação à atenção plena, quais foram as observações?


Não vimos um aumento de atenção plena, mas vimos um aumento na experiência mística, que já era esperado pelo histórico dos psicodélicos. Como outros estudos têm mostrado, a experiência mística tem um papel terapêutico importante. Alguns estudos da Universidade Johns Hopkins [EUA], por exemplo, mostram que a quantidade e a intensidade das experiências místicas determinam e influenciam o efeito terapêutico no tratamento de transtornos como a depressão, a ansiedade e o uso problemático de substâncias. Ou seja, quanto mais intensa a experiência, maior o efeito terapêutico.


Considerando que o LSD aumenta tanto a experiência mística quanto a sugestionabilidade, o que sugerimos no paper foi fazer uma conexão entre essas duas ferramentas terapêuticas. E como fazer isso? Aumentando a intensidade da experiência mística através de sugestões, por exemplo. O terapeuta poderia falar: “Imagine que você está bebendo um copo d’água, sinta a energia que está passando pelo seu corpo, pela sua mente, preste atenção no pensamento e perceba como ele revela coisas importantes para você”, coisas do tipo. Vai depender de cada participante. Mas é uma ferramenta com um potencial interessante.


No estudo, vocês utilizaram uma dose baixa (50 microgramas) de LSD. Qual é a sua opinião sobre o uso de microdoses dessa substância?


Não tenho uma opinião muito bem formada sobre isso. Já houve um tempo em que achei que microdoses poderiam ser ferramentas interessantes, porque dispensam um preparo intenso com set e setting. Mas, por outro lado, acho que a literatura não convence. A maioria dos estudos tem problemas metodológicos graves. Hoje, tendo a achar que toda essa vibe de microdosagem é um gigantesco efeito placebo. Se eu tomar acreditando que vai me ajudar, a sensação é que, de fato, me ajuda. Mesmo que sejam estudos controlados por placebo, a depender da dosagem, dá para sentir a diferença. Então, sou um pouco crítica em relação a isso.


Não diria que a microdosagem não pode ajudar ninguém. Mas acho que toda a atenção que esse assunto recebe na mídia, na população geral, é mais atribuída a uma esperança muito grande, e a uma tentativa de fazer com que essas substâncias voltem a ser um consenso na sociedade. É mais fácil jogar uma luz boa nos psicodélicos quando eles são usados em doses menores, sem apresentarem oficialmente efeito nenhum. Pode ser uma estratégia interessante, mas acho que, a longo prazo, não vão ser as microdosagens que vão se mostrar muito úteis e superiores a outras dosagens para acessar problemas graves. Pode ser que eu esteja errada, o tempo vai mostrar. Estou torcendo para estar errada, mas, por enquanto, não vejo razões para pensar diferente.


Nas pesquisas com psicodélicos, o efeito placebo não é considerado “desprezível”. Quais são as dificuldades de trabalhar com placebo nessa área? O que eles podem nos ensinar?


Hoje, o placebo, de fato, é um efeito muito considerável, e a pesquisa não tem uma solução satisfatória para isso. Quando investigamos outras substâncias, é muito fácil dar duas pílulas, por exemplo, sendo uma delas ativa, com o efeito puramente fisiológico, e a outra não. Dá para controlar muito bem. Mas, no caso dos psicodélicos, isso é muito complicado, porque não há substância comparável, eles mexem na nossa percepção, no ego, no corpo, na percepção de tempo e espaço como nenhuma outra substância. Então é muito difícil simular isso com placebo. Mas existem vários procedimentos que tentam imitar.


O primeiro método mais simples, mas menos satisfatório, é usar um placebo inativo. Dar água em vez da substância, por exemplo. Todos vão perceber o que é placebo e o que não é, como foi o nosso caso. Aí os cientistas, revisores e quem mais for ler o trabalho, vão ficar contentes por verem que cumprimos um desenho padrão na ciência. Eles vão saber que sabemos jogar a partir das regras que eles colocam. Mas isso não faz muito sentido.


Então quais são as alternativas?


Uma alternativa interessante foi aplicada pelo grupo do Dráulio de Araújo e Fernanda Palhano-Fontes, em Natal [no Instituto do Cérebro, da UFRN]. No estudo com ayahuasca, eles inventaram uma nova substância que era semelhante em gosto, aparência e efeito para os participantes, que acharam mais difícil de distinguir. O placebo que eles criaram fazia com que os participantes tivessem um incômodo, com vontade de vomitar, mas não trazia os efeitos característicos dos psicodélicos. Aí a pessoa já tem mais dificuldade de perceber se tomou placebo ou não, especialmente para quem não conhece os efeitos. Mas, em geral, essas soluções não são muito satisfatórias.


Tem outros estudos em Basel [na Suíça] que comparam diferentes psicodélicos: LSD com mescalina, com psilocibina, e com psicodélicos não clássicos serotoninérgicos como a cetamina e o MDMA. Eles pensam: “Olha, não tem placebo satisfatório, então vamos comparar diferentes substâncias e fazer uma descrição a partir disso”, o que eu acho a solução mais elegante e cientificamente mais limpa que existe.


Parece um bom procedimento…


O grande problema desse procedimento é que nem dá para medir muita coisa cognitiva, como nós fizemos, porque esses desenhos requerem que o mesmo participante apareça várias vezes para tomar várias substâncias diferentes. A mesma pessoa teria que repetir os mesmos testes várias vezes. Aí se a pessoa for fazer, por exemplo, o teste de criatividade umas quatro, cinco, seis vezes vai ter enormes efeitos de habituação e aprendizagem. São efeitos importantes na psicologia, que acontecem sempre que você repete a mesma tarefa. Então eles não conseguem medir tarefas muito sofisticadas, como criatividade.


Ou seja, não tem solução perfeita…


Existem várias soluções, e acho que o único jeito é os pesquisadores continuarem usando diferentes métodos, e comparando seus resultados. Acho que essa dificuldade do efeito placebo no campo psicodélico mostra o poder da mente, porque se a mente pode gerar efeitos terapêuticos se a pessoa acredita que ingeriu uma droga, isso mostra o poder que a nossa mente tem. É uma coisa que infelizmente vem sendo esquecida na nossa cultura. No último século, fomos nos desfazendo cada vez mais dessa sabedoria interna que ainda é possível observar em outras culturas, nos povos indígenas, por exemplo. Acho que o uso de psicodélicos é uma das grandes chances de nos reconectar com essa sabedoria interna, ficando cada vez mais conscientes do poder da nossa mente.


Minha grande esperança é que, quando os psicodélicos e os estados alterados de consciência estiverem integrados na nossa cultura, nós nem vamos mais precisar dessas substâncias, já vamos nascer com essas técnicas implementadas. As crianças vão aprender meditação nas escolas, além de yoga, respiração holotrópica, técnicas de sonho lúcido e outras coisas que as farão perceber que a nossa mente é capaz de se autocurar.


A quais temas você tem se dedicado em 2023?


Atualmente, estou como pós-doutoranda no Instituto do Cérebro, na UFRN, com o professor Dráulio de Araújo. Depois de concluir meu doutorado, em Campinas, vim para a UFRN investigar os efeitos da dimetiltriptamina (DMT) na depressão. Estamos na primeira fase do estudo, investigando a segurança de diferentes doses para humanos, ainda com voluntários saudáveis. Depois, virá uma segunda fase na qual vamos investigar os efeitos dessas substâncias na depressão. Minha parte é uma parte pequena do projeto, que é explorar os efeitos da substância na atividade cerebral. Então a gente faz as medidas de eletroencefalograma, e aí vamos ver quais correlações podemos encontrar entre a atividade cerebral e mudanças na percepção dos efeitos subjetivos.


Para mim, tem sido um projeto muito menor comparado ao do LSD, que era um projeto gigante, um doutorado muito exigente e completo. E agora estou feliz que não é um projeto tão amplo. É uma coisa realmente pequena que já traz bastante desafio, porque as análises são muito complexas.


Também fiquei feliz por finalmente conseguir voltar à neurociência, que eu senti falta no estudo de LSD. Lá, fizemos só medidas cognitivas, aplicamos questionários, mas não fizemos nenhuma medida cerebral por razões técnicas. Hoje, estou feliz que não houve, porque ia deixar o projeto muito mais complexo, talvez nem conseguíssemos finalizá-lo. Eu me formei como neurocientista, investigando os efeitos de outros alteradores da consciência, como hipnose e relaxamento profundo, na atividade cerebral, além de várias outras medidas subjetivas. Estou feliz que posso voltar mais a essa parte da neuro e explorar como a atividade cerebral se conecta com a atividade da nossa mente, e ver se consigo acrescentar uma coisinha para o nosso conhecimento, entender melhor os efeitos psicodélicos na mente.


Temos o costume de ver cientistas brasileiros indo trabalhar fora do país. E você fez o caminho inverso. Na sua concepção, qual é a posição do Brasil na ciência psicodélica mundial?


O Brasil tem uma posição muito importante na ciência psicodélica mundial, mas nem sempre está ciente disso. Temos aqui no Brasil, três ou quatro grandes centros que produzem pesquisa com alto grau de qualidade, sendo publicadas em revistas internacionais e de alto impacto, principalmente por causa da relação que o país tem com a ayahuasca. Ter uma substância que é legal para o uso religioso facilita administrar essa substância no laboratório para outros fins, como os fins terapêuticos. Vejo que o Brasil tem uma vantagem muito grande. É uma situação muito rara internacionalmente. Não só para pesquisas laboratoriais, mas para os estudos epidemiológicos também, já que é possível observar participantes de rituais ayahuasqueiros. Há pessoas que tomam o chá uma vez por semana desde criança, tem uma riqueza enorme para estudos observacionais, para a verificação dos efeitos de longo prazo, efeitos na cognição, modo de vida, comportamento, etc. Então vejo que tem muitas vantagens, mas o Brasil não está aproveitando tanto quanto poderia.


Também vejo que isso acontece por causa das dificuldades de se fazer esse tipo de pesquisa. Tem muito potencial para melhorar. Ainda percebo a necessidade de abrir mais centros de pesquisas psicodélicas, oferecendo mais segurança quem se dedica às investigações, com contratos de longo prazo. Minha impressão é que cada pessoa fica na sua, sendo que poderíamos unir nossas forças. Sinto falta de mais congressos psicodélicos, reuniões, intercâmbios entre pesquisadores nacionais. O país poderia virar um líder da ciência psicodélica mundial.



Autor


*Com colaboração de Lucas Maia, integrante do CP que é coautor de três dos cinco artigos oriundos do estudo.

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