RESUMO: Com o objetivo de investigar os potenciais terapêuticos do uso da maconha ou dos canabinoides para aliviar os danos ou auxiliar o tratamento do uso problemático de cocaína e crack, nós coletamos e organizamos de forma sistemática diversos estudos científicos publicados na área. Ao mesmo tempo em que há evidências de um potencial terapêutico, também há evidências de que o uso da maconha conjuntamente com a cocaína pode aumentar os riscos e danos, a depender das populações e dos modelos experimentais utilizados (ex.: uso de animais).
Os potenciais terapêuticos da maconha ou de seus componentes isolados (canabinoides) têm sido cada vez mais demonstrados cientificamente. Isso não é muito surpreendente se considerarmos que os mamíferos possuem um sistema biológico composto por moléculas endógenas (produzidas pelo próprio corpo) que são muito semelhantes aos canabinoides. Esse sistema, que está distribuído por todo o corpo, é chamado de sistema endocanabinoide.
O sistema endocanabinoide está relacionado com diversas funções essenciais para a sobrevivência, como os processos de aprendizagem, memória, desenvolvimento do sistema nervoso, sistema imunológico e também na modulação das respostas de prazer. Para além dos potenciais terapêuticos já estabelecidos, os canabinoides isolados também têm sido estudados como potenciais agentes para tratar ou auxiliar o tratamento do uso problemático de algumas substâncias, como a heroína, cigarro e até mesmo a maconha. Dos diversos canabinoides presentes na maconha, os mais estudados são o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabinol (THC).
A cocaína, ou o crack (uma variação da cocaína que é fumada), é uma das substâncias ilícitas mais usadas no mundo. Seu uso está associado com maiores riscos e danos em diversas áreas, como a saúde mental, as doenças cardiovasculares e até mesmo com uma maior taxa de mortalidade. Apesar de muitas pessoas desenvolverem transtornos relacionados ao uso da cocaína, como a dependência, as opções de tratamento para quem quer parar ou diminuir seu uso ainda são extremamente limitadas.
Dado este contexto, eu e o psicofarmacologista Lucas Maia, juntamente com outros colaboradores, realizamos uma revisão sistemática dos estudos que avaliam a exposição à maconha ou a canabinoides juntamente com a cocaína. Essa revisão foi publicada recentemente na revista científica European Neuropsychopharmacology (Daldegan-Bueno et al., 2021).
Estudo de Dimitri Daldegan-Bueno e Lucas Maia, co-fundadores do Ciência Psicodélica, publicado no periódico científico European Neuropsychopharmacology.
Revisão sistemática é um método utilizado para levantar de forma organizada os dados disponíveis em uma determinada área ao qual vários critérios são seguidos e descritos de forma clara e precisa, o que torna o trabalho reprodutível por outros cientistas. Dessa forma, nós investigamos quatro bancos de dados que contêm diversos artigos científicos. Para tanto, desenvolvemos uma estratégia de busca que identificava trabalhos que continham palavras-chave relacionadas à maconha/canabinoides juntamente com cocaína ou crack publicados desde o ano 2000. Seguindo os protocolos de exclusão e seleção (Figura 1), incluímos 46 estudos na nossa revisão.
Figura 1. Adaptado de Daldegan-Bueno et al. (2021). Processo de seleção de estudos (Page, 2021). A estratégia de busca foi aplicada em quatro bases de dados (Medline, Web of Science, CINAHL plus e PsycInfo) onde 12.415 estudos foram encontrados. Desses, 6.244 eram duplicados (encontrados duas ou mais vezes em diferentes bases) que foram excluídos. Dessa forma avaliamos, 6.171 estudos a partir de seus títulos e resumos para verificar se correspondiam com o objetivo da revisão. Destes, 111 estudos foram lidos na íntegra, onde os métodos foram analisados para verificar se correspondiam aos objetivos da revisão, dos quais 41 foram incluídos. Além disso, outros cinco estudos foram identificados e adicionados a partir de métodos secundários (ex.: leitura das bibliografias dos artigos incluídos), resultando em 46 estudos incluídos.
Dos 46 estudos incluídos, 19 (42%) investigaram os efeitos de canabinoides utilizando modelos animais. De maneira geral, esses trabalhos verificaram um potencial terapêutico do CBD de proteger os danos causados por altas doses de cocaína e também de comportamentos relacionados à dependência, como a diminuição do consumo ou a facilitação da extinção de memórias relacionadas ao consumo de cocaína. Já os estudos com THC tiveram efeitos mais diversos, tanto de proteger quanto de aumentar riscos para esses mesmos parâmetros. Apenas um estudo avaliou os efeitos do CBD e do THC juntos e não encontrou efeitos em comportamentos relacionados à cocaína.
Os outros 27 (58%) estudos investigaram o impacto do uso da maconha ou administração de CBD em pessoas que fazem uso, na maioria das vezes, problemático de cocaína. Uma parte significativa desses estudos, que avaliou pessoas que usam tanto maconha quanto cocaína ou crack, encontrou um aumento de risco ou danos ao usar as duas substâncias conjuntamente em uma série de fatores, como funções neurocognitivas, atividade cerebral, mortalidade, uso de outras substâncias e comportamentos relacionados ao uso de cocaína e crack.
Você deve notar que estes resultados são bem diferentes dos encontrados com os estudos animais, certo? Isso pode acontecer por vários motivos.
Um fator importante é que os estudos utilizando modelos animais não empregaram modelos que induzem a dependência de canabinoides — ao contrário, eles usaram os canabinoides como uma possível intervenção para proteger dos danos causados pela cocaína. Em contrapartida, os estudos em humanos avaliaram o uso da maconha muitas vezes com presença de problemas e de dependência. Além do mais, muitos desses estudos podem ter incluído pessoas que fazem uso de diversas substâncias, um fenômeno que já está bem descrito como fator que aumenta riscos e danos decorrentes do uso de drogas.
De maneira geral, esses estudos em humanos sugerem que o uso da maconha, especialmente quando acompanhado de problemas ou transtornos (ex.: dependência), juntamente com cocaína ou crack, está associado com um aumento de danos e problemas (ex.: piores funções neurocognitivas, maior uso de cocaína, uso de mais substâncias).
Na revisão, os autores observaram que os estudos em humanos sugerem que o uso da maconha juntamente com cocaína ou crack, está associado com um aumento de danos e problemas, tais como piores funções neurocognitivas, maior uso de cocaína e uso de mais substâncias).
Houve dois ensaios clínicos duplo-cego que administraram CBD em pessoas que estavam em tratamento por uso problemático de crack. Estes estudos, de maneira semelhante aos com animais, avaliaram uma única substância e em um contexto clínico, portanto, são muito mais comparáveis com os estudos em animais. Mesmo assim, os estudos não encontraram melhoras na fissura (vontade de utilizar cocaína) e nem em outros parâmetros (como saúde mental e qualidade de sono) das pessoas que receberam o CBD em comparação com pessoas que receberam uma substância sem efeito (placebo).
Isso pode significar que, ao contrário do que as pesquisas com animais sugerem, o CBD pode não ser eficaz em diminuir a fissura em usuários de cocaína. De forma alternativa, o CBD poderia ser eficaz em diminuir outros problemas decorrentes do uso da cocaína, como diminuição de efeitos psicológicos indesejados (ex.: paranóia) ou diminuição da toxicidade da cocaína, alguns dos resultados encontrados nos estudos com animais. No entanto, ainda é importante que mais ensaios clínicos sejam realizados.
Outra série de estudos em humanos (12 ao total) investigou, na maioria através de entrevistas, o uso intencional da maconha para aliviar ou substituir o uso de crack em pessoas em situações socioeconômicas vulneráveis. Esses estudos ocorreram na maior parte no Brasil (muitos na região do centro de São Paulo) e descreveram pessoas que percebem o uso da maconha como benéfico para diminuir ou controlar os efeitos adversos decorrentes do uso de crack. Esses benefícios incluíram, dentre outros fatores, alívio de sintomas indesejados (ex.: paranóia), modulação da intensidade do efeito do crack e diminuição da fissura por crack.
É importante ressaltar que esses estudos são baseados na autopercepção das pessoas investigadas e, portanto, o poder de generalização dos resultados é limitado. Os benefícios descritos, por exemplo, podem ser restritos a um grupo específico de pessoas. Não obstante, as pesquisas reforçam que os potenciais terapêuticos dos canabinoides para a dependência de crack são um tema de estudo complexo e que dependem de diversos fatores. Ainda mais importante, esses trabalhos reforçam a necessidade de realizar mais estudos clínicos e controlados.
Mas então o uso da maconha ou dos canabinoides pode ajudar no tratamento de dependência da cocaína?
Ainda não existe uma resposta para essa pergunta. O que o nosso trabalho deixa claro é que existe uma literatura que indica e justifica a necessidade de realizar mais estudos controlados na área (ex.: ensaios clínicos), especialmente considerando que os estimulantes, incluindo a cocaína, estão entre as drogas ilícitas mais usadas no mundo e que os tratamentos disponíveis para dependência dessa classe de substâncias são limitados.
Por Dimitri Daldegan-Bueno, MS.
Referências
Dimitri Daldegan-Bueno, et al. (2021) Co-exposure of cocaine and cannabinoids and its association with select biological, behavioural and health outcomes: A systematic scoping review of multi-disciplinary studies. European Neuropsychopharmacology, 51, 106-131. https://doi.org/10.1016/j.euroneuro.2021.06.002
Fischer, B., et al. (2015). Addressing the stimulant treatment gap: A call to investigate the therapeutic benefits potential of cannabinoids for crack-cocaine use. International Journal of Drug Policy, 26(12), 1177-1182. https://doi.org/10.1016/j.drugpo.2015.09.005
Page, M. J., et al. (2021). The PRISMA 2020 statement: An updated guideline for reporting systematic reviews. BMJ, 372, n71. https://doi.org/10.1136/bmj.n71
Parsons, L. H., & Hurd, Y. L. (2015). Endocannabinoid signalling in reward and addiction. Nature Reviews Neuroscience, 16(10), 579-594. https://doi.org/10.1038/nrn4004
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