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Chá com cinzas: como a ayahuasca pode ajudar a parar de fumar

Atualizado: 23 de nov. de 2021


Resumo: Através de uma pesquisa realizada na UNICAMP, nós identificamos que a intensidade da experiência mística durante uma vivência com ayahuasca, bem como a frequência do uso do chá, podem aumentar as chances de uma pessoa parar de fumar. Esses resultados adicionam evidências aos potenciais terapêuticos dos psicodélicos como ferramentas de auxílio no tratamento do tabagismo.


 

Senti que meus pulmões estavam pesados e fiz uma limpeza com muitas cinzas e gosto de cinzeiro. Uma semana depois parei de fumar completamente”.

Esse relato faz parte de uma pesquisa que realizei na UNICAMP sob a supervisão do professor Luís Fernando Tófoli e com a colaboração do biólogo Lucas Maia e a médica Carolina Massarentti. Nós investigamos as características de pessoas que pararam ou diminuíram o uso de cigarro após uma ou mais experiência(s) com ayahuasca. O artigo em que apresentamos e discutimos os resultados está em processo final de revisão por pares na revista científica Psychopharmacology.


Mas antes de falar da pesquisa em si, é importante contextualizar o tema. Você sabia que, depois de pressão alta, o uso de cigarros é o maior fator de risco que leva à morte prematura no mundo? Em 2015, fumar foi responsável por quase 12% das fatalidades globais, causando cerca de 6,4 milhões de mortes que poderiam ter sido evitadas. Nesse mesmo ano, aproximadamente 1,5 bilhões de pessoas, ou 20% da população mundial, fumavam. Curiosamente, é estimado que metade das pessoas que fumam gostariam de parar de fumar (GBD, 2015; WHO, 2019).


Depois de pressão alta, o uso de cigarros é o maior fator de risco que leva à morte prematura no mundo.



Uma das vertentes das pesquisas com psicodélicos diz respeito aos seus potenciais para auxiliar o tratamento de dependência causada pelo uso de substâncias. Em relação ao tabagismo, as pesquisas ainda são relativamente escassas, mas há um crescente número de estudos voltados ao tema, com especial atenção à psilocibina (substância presente nos “cogumelos mágicos”).


Um estudo realizado na Universidade de John Hopkins identificou uma taxa de sucesso entre 70% e 80% em pessoas que receberam psilocibina como uma substância auxiliar a uma intervenção para parar de fumar (Johnson et al,2014). Esses resultados são promissores, especialmente considerando que os tratamentos disponíveis têm uma taxa de sucesso de apenas 30%. Contudo, o nível de evidência que esse estudo fornece ainda é baixo por não ter utilizado um grupo controle, no qual uma substância sem efeito (placebo) é administrada para comparação. No Brasil, existem diversos relatos de pessoas que pararam de fumar após experiências com ayahuasca e alguns estudos preliminares sugerem que o uso ritualístico do chá está relacionado com a diminuição do uso de drogas, incluindo o cigarro.


No Brasil, existem diversos relatos de pessoas que pararam de fumar após experiências com ayahuasca.



É nesse contexto que, através de um questionário online, levantamos dados como sexo, idade, nível de educação, histórico e padrão de uso do cigarro, além do histórico da pessoa com ayahuasca e detalhes sobre a experiência mais importante com o chá, que tenha contribuído para parar ou diminuir o uso de cigarro. Devido à demonstrada relação da experiência mística com diversas mudanças comportamentais positivas, hipotetizamos que a intensidade da experiência mística sob o efeito da ayahuasca ajudaria a parar de fumar. Portanto, os participantes responderam também ao Questionário de Experiência Mística, tendo como referência a experiência mais importante para parar ou diminuir o uso de cigarro.


Ao final da coleta de dados, 441 participantes foram divididos em dois grupos baseados na sua relação com o cigarro após a experiência com ayahuasca: pessoas que pararam de fumar ou pessoas que diminuíram o uso de cigarro. Essa divisão ocorreu para que pudéssemos comparar as características de cada grupo e investigar os fatores relacionados com parar, em vez de “apenas” diminuir o consumo de cigarro.


De maneira geral, o grupo que parou de fumar teve um histórico mais intenso em relação ao uso de cigarro quando comparado com o grupo que diminuiu: as pessoas começaram a fumar mais novas, fumavam mais cigarros por dia, durante mais tempo e tinham um maior nível de dependência.


Para investigar as características que influenciam as chances de os participantes pertencerem ao grupo que parou de fumar, utilizamos um modelo estatístico que permite controlar diversas informações que podem influenciar os resultados. Nesse modelo, inserimos informações sobre o uso de cigarro, de ayahuasca, escores de experiência mística e informações sociodemográficas.


Dessa forma, identificamos que, conforme a nossa hipótese, quanto maior a intensidade da experiência mística durante o ritual, maiores as chances de parar de fumar em vez de reduzir o uso de cigarro. Além disso, identificamos que beber ayahuasca a cada quinze dias, quando comparado a períodos menos frequentes (ex.: uma vez por mês), também aumentou as chances de parar de fumar. Ou seja, podemos dizer que, entre as pessoas do nosso estudo, vivenciar uma experiência mística e consumir ayahuasca com mais frequência foram fatores que favoreceram o fim do uso do cigarro.


No estudo, os pesquisadores observaram que, quanto maior a intensidade da experiência mística durante o ritual com ayahuasca, maiores as chances de parar de fumar em vez de reduzir o uso de cigarro.



Ao mesmo tempo que os resultados dão suporte à hipótese da experiência mística como um dos mecanismos responsáveis pelo potencial terapêutico para transtornos relacionados ao uso de substâncias, eles também indicam que existem outros mecanismos envolvidos, tendo em vista que a frequência do uso da ayahuasca foi um fator de proteção importante.


É possível pensar em diversos mecanismos pelos quais a ayahuasca pode ter efeitos terapêuticos. Esses mecanismos podem, de forma geral, ser classificados em três categorias: (1) efeitos fisiológicos da substância no corpo, como diminuição de inflamação e aumento de plasticidade neural; (2) efeitos subjetivos e psicológicos, como o aumento de consciência sobre uma questão e a ocorrência de experiência mística; 3) efeitos relacionados ao contexto ou setting, como o tipo de ritual sendo realizado e, especificamente no caso da ayahuasca, contextos envolvendo um uso ritualístico e/ou religioso da substância. Dessa forma, os diversos mecanismos terapêuticos da ayahuasca poderiam, em teoria, agir repetidamente devido ao uso repetido.


Além desses resultados, solicitamos que os participantes descrevessem “a experiência mais significativa com ayahuasca que levou a parar ou diminuir o uso de cigarro” e “como foi o processo para parar ou diminuir o uso de cigarro”. Nessas questões, os participantes tinham um espaço livre para expressarem suas impressões através de texto. Fizemos uma análise temática qualitativa com essas respostas, avaliando-as e caracterizando-as em grupos (ou temas) com base na proximidade de conteúdo.


Através da análise temática, identificamos 8 temas relacionados à experiência com ayahuasca e ao processo de parar ou reduzir o uso de cigarro. Alguns desses temas, como "experiência espiritual" e "experiência inespecífica ou inefável", tiveram conteúdos semelhantes aos descritos nas experiências místicas. Os detalhes sobre cada tema e exemplos de relatos podem ser encontrados na Tabela abaixo.


É importante ressaltar que o nosso estudo não mostra a prevalência, ou seja, a proporção de pessoas que pararam de fumar a partir de uma experiência com ayahuasca, dentro da população de usuários de ayahuasca como um todo. Como nós direcionamos a pesquisa especificamente para um grupo de pessoas que pararam ou diminuíram, não temos informações sobre as características ou a prevalência das pessoas que não tiveram benefícios para parar de fumar utilizando ayahuasca. Dessa forma, a generalização dos nossos resultados deve ser feita com bastante cuidado.


De forma geral, essa pesquisa adiciona evidências tanto para os potenciais terapêuticos dos psicodélicos como ferramentas de auxílio no tratamento do tabagismo, quanto para a experiência mística como um mecanismo de alívio da dependência de substâncias, ressaltando a importância de continuar pesquisando a relação entre os psicodélicos e o uso de outras substâncias, seus mecanismos e potenciais.



Tabela: Características de cada tema identificados na descrição do processo de parar de fumar ou diminuir o uso de cigarros.

Tema

Descrição do tema

Exemplo de relato do tema

Aquisição de consciência

Entendimento relacionado ao ato de fumar que levaram a um aumento de autocuidado. Isso incluiu razões que levam a fumar, compreensão da importância da saúde física e os efeitos maléficos do cigarro.

(a experiência) me alertou da importância de me amar mais, de cuidar mais de mim, me devolveu o sentido do amor próprio. A partir daí o fato de fumar começou a me incomodar profundamente e eu comecei a refletir sobre o quanto isso me fazia mal, e fui reduzindo o uso.

Experiência sensorial

​Experiências sensoriais como imagens (“mirações”), cheiros e gosto diretamente ligado ao ato de fumar. Essas experiências normalmente foram aversivas e motivaram parar ou reduzir o uso de cigarro.

Em um determinado momento do trabalho, eu estava de olhos fechados e senti meus pulmões machucados. Fui entrando nessa situação e me vi em uma cama de hospital prestes a morrer. Quando ia morrer, abri os olhos e vi que estava no templo, vivo, mas com os pulmões doloridos.

​Purga

​Experiências de limpeza físicas e psicológicas frequentemente acompanhada de vômito e diarreia. Essas experiências normalmente aconteceram juntamente com manifestações sensoriais como excreções com cor, cheiro e gosto de cinzas.

Eu senti que meus pulmões estavam pesados e eu fiz uma limpeza com muitas cinzas e gosto de cinzeiro. Uma semana depois eu parei de fumar completamente.

Experiência espiritual

Experiências relacionadas com o mundo metafísico, incluindo contato com entidades que trouxeram cura, consciência sobre a morte e sobre parar de fumar.

Eu estava imóvel e alguns índios faziam uma cirurgia na minha garganta, me mostrando o que estava sendo tirado dela por causa do cigarro. E que se eu não parasse de fumar, as consequências seriam piores. Eu tive uma chance de mudar ou continuar fumando e ter um câncer. Junto com as bolas pretas que os índios tiravam saía muitas formigas.

Experiência inespecífica ou inexplicável

​Alguns participantes relataram não haver nenhum conteúdo na experiência relacionada com parar ou diminuir o uso de cigarro ou que a experiência era inexplicável.

É difícil de explicar... na verdade, durante o meu segundo ritual, coloquei na cabeça que não iria fumar mais. Depois disso não sinto mais falta do cigarro.

​Diminuição da vontade de fumar ou aversão ao cigarro

​Alguns participantes relataram uma diminuição no desejo de fumar após a experiência. Alguns ligados à repulsa, como ao cheiro e ao gosto, a cigarros.

Após chegar em casa (depois da cerimônia) fui direto fumar um cigarro e ele estava intragável, muito amargo na minha boca. E assim aconteceu com vários nos dias seguintes.

​Parar de fumar de forma imediata ou gradual

​Para alguns participantes, parar de fumar aconteceu de forma imediata após a experiência, mas para outros houve uma diminuição gradual.

Após a experiência não consegui mais fumar cigarros de papel e hoje fumo cigarros artesanais feitos de palha e tabaco natural. De 20 cigarros por dia, passei a fumar 2 ou 3.

​Aumento de motivação

​Alguns participantes relataram que a experiência com ayahuasca forneceu motivação ou força de vontade para parar de fumar.

Quando passei a compreender melhor o potencial da vida, reconheci a importância do meu papel no mundo. Vi que minha saúde seria essencial na realização dos meus propósitos, e só quando realmente acreditei nesses propósitos foi que tive força para lutar pela decisão correta.


Autor:



Referências:


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Daldegan-Bueno, D., Maia, L.O., Massarentti, C. M. & Tófoli, L. F. (Em revisão) Ayahuasca and tobacco smoking cessation: results from an online survey in Brazil. Psychopharmacology.


GBD (2015). Global, regional, and national comparative risk assessment of 79 behavioural, environmental and occupational, and metabolic risks or clusters of risks, 1990–2015: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2015. The Lancet, Volume 388, Issue 10053, 1659 - 1724.


Johnson et al. (2014). Pilot study of the 5-HT2AR agonist psilocybin in the treatment of tobacco addiction. Journal of Psychopharmacology, 28(11):983-92. doi: 10.1177/0269881114548296.


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Braun, V. & Clarke, V. (2006) Using thematic analysis in psychology, Qualitative Research in Psychology, 3:2, 77-101. https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa


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