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Foto do escritorFlávia Zacouteguy Boos

O uso de psicodélicos pode aumentar a sensação de conexão com a natureza?


Resumo: O uso de psicodélicos com frequência produz a sensação de conexão profunda com a natureza e a sensação de unidade com o todo. Mas será que, quando acabam os efeitos alteradores de consciência, os psicodélicos transformam a relação que as pessoas estabelecem com a natureza? Nesse artigo serão discutidos quatro trabalhos científicos que abordam esses aspectos, o que podemos concluir deles e quais as suas limitações.

 

A espécie humana surgiu entre 320 e 250 mil anos atrás no continente africano, e entre 100 e 50 mil anos atrás foi se espalhando paulatinamente pelos demais continentes. O estilo de vida era caçador coletor, no qual os indivíduos consumiam o que precisavam sem estocar alimentos. Mais tardiamente, com o domínio de técnicas que permitiam plantar e criar animais, foi possível criar raízes e deixar de migrar em busca de comida. Acredita-se que esse foi um importante processo para que comunidades e sociedades mais complexas se desenvolvessem.


A história recente nos traz a perspectiva de uma mudança profunda no estilo de vida da humanidade, que se desenrola de forma acelerada e cada vez mais desconectada da natureza. A criação de centros urbanos com poucos parques, a separação da produção de alimentos e a forma de obtê-los (ao alcance de alguns cliques nos aplicativos de compra), as horas despendidas em trabalho em frente a telas digitais, o estímulo ao consumo e o lazer cada vez mais vinculado a tecnologias contribuem para esse fenômeno.

Nesse processo, o modelo de desenvolvimento econômico vem esgotando os recursos naturais através da devastação de amplas áreas de florestas para criação de gado e plantação de monoculturas, da construção de barragens nos rios, do uso desenfreado de agrotóxicos nas plantações e da expulsão de populações originárias de suas terras, a exemplo da tentativa de implementação do marco temporal no Brasil. Para além disso, o uso de itens descartáveis, que normalmente não são reciclados, o uso de combustíveis fósseis e a liberação de gases na atmosfera que contribuem para o efeito estufa estão poluindo o meio ambiente e constituem uma das principais causas do aquecimento global e da crise climática


Se por um lado estamos lutando para sobreviver ao caos de uma pandemia mal manejada politicamente e tentando garantir um Estado Democrático de Direito no nosso país, por outro, a crise climática oferece riscos ainda mais preocupantes, inclusive para nossa sobrevivência enquanto espécie.


Ao longo da história, os humanos mudaram profundamente seu estilo de vida. Este processo vem ocorrendo de forma acelerada e, cada vez mais, mantendo as pessoas desconectadas da natureza.

Esse retrato contribui para uma desconexão que faz com que as pessoas se vejam como seres à parte da natureza e não reflitam sobre como suas escolhas – sejam elas políticas, como o voto, ou individuais, como a compra de itens desnecessários ou descartáveis – impactam nesse cenário.


E qual a relação entre os psicodélicos e a crise climática?


O uso de plantas de poder, psicodélicos ou enteógenos, é feito por povos originários de diferentes regiões do mundo há séculos, como no caso da ayahuasca, usada por populações indígenas da Amazônia, ou da iboga, usada por povos tradicionais de países africanos como o Gabão. Povos que, por acaso (ou não), mantêm uma relação estreita e de maior cuidado com os ambientes naturais, se comparados com as populações urbanas. De qualquer forma, experiências psicodélicas comumente induzem estados alterados de consciência, que incluem a dissolução do ego, dificultando a percepção das fronteiras do próprio “eu”; e a sensação de unidade com o todo, promovendo uma intensa percepção de conexão e pertencimento à natureza, de forma a compreendê-la como uma extensão de si mesmo.


“Eu era todo mundo, unidade, uma vida com 6 bilhões de rostos, eu era único pedindo por amor e dando amor, eu estava nadando no mar, e o mar era eu.” - Relato, durante os efeitos psicodélicos, de paciente com depressão refratária que passou por tratamento com psilocibina (Watts et al., 2017).

Além disso, os psicodélicos podem alterar de forma duradoura características individuais consideradas mais estáveis. Em ambientes com suporte psicológico, apenas uma dose de LSD ou de psilocibina (extraída dos cogumelos mágicos) foi capaz de aumentar o traço de personalidade de abertura, que envolve maior disposição para novas experiências. Nesses estudos, também foi observado o aumento da confiança, do otimismo e da sensação subjetiva de bem-estar.


Mas será que a sensação de conexão profunda com a natureza durante uma experiência psicodélica pode modificar de forma duradoura essa relação?


Alguns trabalhos científicos mais recentes têm mostrado a relação entre o uso de psicodélicos e a relação com a natureza (do inglês, nature relatedness). Um trabalho de 2017 buscou entender se engajar-se em comportamentos pró-ambientais – como economizar água e energia, se preocupar com reciclagem de lixo e uso de produtos com menor impacto ambiental – poderiam ser influenciados pela percepção individual de relação com a natureza e pelo uso de psicodélicos (Forstmann & Sagioglou, 2017). Para isso, foram utilizados questionários online que foram respondidos por 1487 pessoas, sendo 61% mulheres.


“Antes eu gostava da natureza, agora eu me sinto parte dela. Antes eu olhava para ela como uma coisa, como a TV ou um quadro. [Mas] você é parte dela, não há separação ou distinção, você é ela". - Relato de paciente com depressão refratária que passou por tratamento com psilocibina (Watts et al., 2017).

A perspectiva individual de relação com a natureza foi medida por uma escala que subdividia essa relação em três tipos, também chamadas de dimensões. Participantes que já fizeram uso de psicodélicos apresentaram maior inclinação a perceber a natureza como uma extensão de si mesmos, além de apresentarem maior propensão a gostar de estar em ambientes naturais, independentemente do uso de outras substâncias (psicodélicos atípicos, estimulantes ou drogas legais), da personalidade ou visão política. O uso de psicodélicos não apresentou relação direta com o envolvimento em comportamentos pró-ambientais, mas pessoas que se reconhecem como parte da natureza tendem a relatar mais engajamento em práticas que protegem o meio ambiente. Ou seja, o estudo permite concluir que pessoas que já usaram psicodélicos e se identificam mais com a natureza tendem a realizar mais ações que protegem o meio ambiente.


No estudo de Forstmann & Sagioglou (2017), observou-se que pessoas que já usaram psicodélicos e se identificam mais com a natureza tendem a realizar mais ações que protegem o meio ambiente.

Outra questão importante a ser entendida é se a incapacidade de discernir os limites do próprio eu (dissolução do ego) durante a experiência psicodélica poderia facilitar a percepção de um contínuo com a natureza, um pertencimento e uma conexão profunda que favoreceriam mudanças comportamentais na vida futura. O trabalho do grupo londrino chefiado por Robin Carhart-Harris (Nour et al., 2017), um importante pesquisador da ciência psicodélica, de certa forma abordou isso através de um questionário anônimo online com 893 participantes (36% mulheres). De certa forma, eles reproduziram os achados do trabalho anterior, identificando que indivíduos que já haviam consumido algum psicodélico na vida tinham maior conexão com a natureza e níveis maiores do traço de personalidade de abertura, em que as pessoas são mais receptivas a novas experiências. O traço aumentado de abertura não foi exclusivo para consumo de psicodélicos, pois também foi associado a pessoas que haviam consumido cocaína. Uma parte dos participantes (604 pessoas) respondeu também um questionário sobre o nível de dissolução do ego percebido em sua experiência psicodélica pregressa mais intensa. A análise das respostas indicou que aqueles que experienciaram maior dissolução do ego também apresentaram maior relacionamento com a natureza e traço de personalidade de abertura.


No estudo de Nour e colaboradores (2017), observou-se que os participantes que experienciaram maior dissolução do ego também apresentaram maior relacionamento com a natureza, traço de personalidade de abertura.

Apesar de trazerem observações interessantes, os dois trabalhos citados não permitem avaliar relação de causa: o uso de psicodélicos promove maior aproximação com a natureza ou pessoas próximas à natureza usam essas substâncias com maior frequência?


Dois trabalhos desse mesmo grupo londrino lançam luz sobre essa questão, avaliando o antes e o depois do uso das substâncias. O primeiro estudo foi publicado em 2018 (Lyons & Carhart-Harris, 2018) e avaliou o antes e o depois em um grupo pequeno de pacientes (sete) com transtorno depressivo maior, resistente a tratamentos convencionais. O olhar sobre a natureza foi uma avaliação extra do objetivo central do projeto, que era avaliar se a psilocibina poderia tratar essa forma mais grave de depressão no modelo de terapia assistida com psicodélicos. Os autores verificaram que, após as sessões, os pacientes apresentaram aumento nos níveis de percepção subjetiva de conexão com a natureza uma semana após a psilocibina, o que se manteve pelo menos sete a doze meses depois no retorno dos pacientes. Esse estudo apresenta algumas limitações, dentre elas, poucos participantes e a ausência de um grupo chamado controle, em que pacientes com depressão receberiam placebo, por exemplo, e assim poderíamos atribuir a mudança de forma mais confiável à psilocibina.


O segundo trabalho usou novamente um questionário online para avaliar a relação com a natureza de pessoas que planejavam usar psicodélicos clássicos, Salvia divinorum ou ibogaína (Kettner et al., 2019). O primeiro achado interessante ocorreu antes do uso, quando foi encontrada uma correlação entre o número de usos de psicodélicos na vida e o nível de relação com a natureza, ou seja, quanto maior era um, maior também era o outro. Ao comparar as respostas dos participantes de uma semana antes do uso com duas semanas, quatro semanas e dois anos após a experiência psicodélica, também houve um aumento do senso de pertencimento à natureza. Vale ressaltar que o número de participantes foi decaindo ao longo do tempo (começou com mais de 600 pessoas, caiu pela metade duas semanas depois, e, em dois anos, restaram apenas 64), o que pode trazer um viés importante para a pesquisa, já que seria possível pensar que as pessoas mais preocupadas com o meio ambiente se sentiriam mais motivadas para continuar na pesquisa.


Também foi encontrada correlação entre a percepção de bem-estar psíquico com os níveis de conexão com a natureza em duas e quatro semanas depois, ou seja, houve tendência entre aqueles que reportaram maior bem-estar também se sentirem um pouco mais conectados com o meio ambiente. Os autores buscaram entender qual elemento durante a experiência psicodélica contribuiu para mudar a relação com a natureza, estudando o contexto de uso, os níveis de dissolução do ego, experiências místicas e desafiadoras, além de efeitos visuais psicodélicos. O quanto os participantes sentiram que a natureza presente durante os efeitos psicodélicos influenciou a qualidade da “viagem” teve relação com a posterior mudança na sensação de pertencimento à natureza. Além disso, apenas o nível de dissolução do ego contribuiu para essa mudança.


Em conjunto, podemos dizer que os estudos apontam para uma percepção de maior conexão com a natureza em pessoas que usam psicodélicos e isso, possivelmente, pode ser mediado pela dissolução do ego. Ainda assim, são poucos os trabalhos, e eles possuem uma série de limitações e vieses a serem melhorados no futuro. Só para citar alguns: os estudos são online e os participantes não representam a população como um todo. No geral, são pessoas com mais anos de estudo, de poucos países. Além disso, aqueles que são mais ligados com a natureza podem se sentir mais motivados a responder à pesquisa. Também não existe um controle sobre as substâncias usadas (pureza e dose) ou contexto de uso. Outro fator fundamental a ser mais bem destrinchado pelos cientistas é se realmente existe uma relação causal entre uma experiência psicodélica e a conexão com a natureza, se isso pode ser atingido apenas com o uso de substâncias ou se outras práticas que propiciem experiências místicas ou de dissolução do ego também poderiam favorecer essas mudanças. Por fim, mesmo que psicodélicos alterem de forma significativa a conexão com a natureza, qual o tamanho desse efeito? Pouco ou muito? Para além da percepção mental, essas substâncias são capazes de mudar comportamentos, aumentar práticas sustentáveis ou outras escolhas políticas?


Em conjunto, os resultados dos estudos apresentados aqui apontam para uma percepção de maior conexão com a natureza em pessoas que usam psicodélicos.

Enquanto a ciência psicodélica busca entender melhor esses aspectos, ficamos com algumas mensagens: na perspectiva individual, o contato com ambientes naturais auxilia na manutenção e na recuperação da saúde física e mental; em uma perspectiva coletiva, a crise climática já afeta a vida na Terra e é devida em grande parte à atividade humana. Como observou um grupo de ecopsicólogos em uma conferência há quase 30 anos: “Se a percepção de si mesmo for expandida para incluir o mundo natural, comportamentos que levem à destruição do mundo serão experienciados como autodestruição” (citado em Kettner et al., 2019).


Não está claro o caminho a ser adotado para que as pessoas se convençam de que cuidar do planeta é cuidar da nossa casa. Mas é imperativo buscarmos soluções para a crise climática, defender a Amazônia e entender que a destruição do meio ambiente impacta diretamente na manutenção das vidas, no nosso bem-estar e no futuro da humanidade.


Autora


Referências


Forstmann, M., & Sagioglou, C. (2017). Lifetime experience with (classic) psychedelics predicts pro-environmental behavior through an increase in nature relatedness. Journal of Psychopharmacology, 31(8), 975-988. https://doi.org/10.1177/0269881117714049

Kettner, H. et al. (2019). From Egoism to Ecoism: Psychedelics Increase Nature Relatedness in a State-Mediated and Context-Dependent Manner. International Journal of Environmental Research and Public Health, 16(24), 5147. https://doi.org/10.3390/ijerph16245147

Lyons, T., & Carhart-Harris, R. L. (2018). Increased nature relatedness and decreased authoritarian political views after psilocybin for treatment-resistant depression. Journal of Psychopharmacology, 32(7), 811-819. https://doi.org/10.1177/0269881117748902

Nour, M. M., Evans, L. & Carhart-Harris, R. L. (2017). Psychedelics, Personality and Political Perspectives. Journal of Psychoactive Drugs, 49(3), 182-191. https://doi.org/10.1080/02791072.2017.1312643

Watts R. et al. (2017). Patients’ Accounts of Increased “Connectedness” and “Acceptance” After Psilocybin for Treatment-Resistant Depression. Journal of Humanistic Psychology., 57(5), 520-564. https://doi.org/10.1177/0022167817709585

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