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Foto do escritorRodolfo Olivieri

Psicodélicos modificam a linguagem e isso pode ser bom para a psicanálise

Atualizado: 6 de abr. de 2023



Resumo: Após publicação de artigo científico apontando alterações na forma como a linguagem se manifesta em pessoas sob efeito de baixas doses de LSD, uma matéria foi publicada dizendo que não só a substância poderia atrapalhar uma psicoterapia como a incapacidade de estabelecer diálogos complexos e raciocínios lógicos poderia contradizer a serventia do discurso psicodélico para a psicanálise. No entanto, essa alteração na linguagem promovida pelos psicodélicos pode não apenas ser inócua em uma análise como ainda ajudar o processo, auxiliando o sujeito a se desvencilhar do discurso do eu, racional, abrindo espaço para manifestações inconscientes. Além disso, a psicanálise renuncia a presença do analista durante a experiência escutando o sujeito ainda sob efeito da substância, fazendo mais bom uso do discurso que será construído, em sua presença e na transferência, a posteriori.


 

Em 2023, um artigo com a autoria principal compartilhada pela pesquisadora Isabel Wießner e o médico Marcelo Falchi, e com coautoria de diversos pesquisadores (inclusive eu) foi publicado no periódico European Neuropsychopharmacology, sob o título traduzido como “LSD e linguagem: Diminuição da conectividade estrutural, aumento da similaridade semântica, alteração do vocabulário em indivíduos saudáveis”.


A pesquisa concluiu que, em indivíduos saudáveis, sob efeito de baixas doses de LSD (50 μg), a forma como a linguagem se manifesta pode sofrer alterações (que perseveram por até 24 horas após o consumo da substância), como: narrativas (pessoais ou não) com estruturas mais simples e desconexas, maior semelhança semântica e vocabulário gramatical simplificado. No geral, os efeitos mais fortes na estrutura da linguagem foram percebidos nas narrativas ambíguas (durante/após o pico) e na semântica e vocabulário de narrativas criativas. Vale ressaltar que esses resultados foram coletados em um contexto de pesquisa, com setting (ambiente) clínico e 24 sujeitos saudáveis participando voluntariamente de uma série de testes e escalas.


A partir da publicação desses resultados, o portal Metrópoles publicou uma reportagem com o título “Estudo: LSD causa desorganização da fala e pode atrapalhar psicoterapia”, matéria divulgada, inclusive, pelo importante @micelionoticias e comentada pelo colega Luciano C. Bornholdt, que critica a relevância de um discurso estruturado na prática psicanalítica, que busca justamente escutar o conteúdo inconsciente que escapa à estruturação imposta à fala. No texto, assinado por Yasmin Gurgel, é discutida a pesquisa e seus resultados. Cito o trecho que toca o ponto de mais proximidade com meu trabalho:


"Os cientistas explicam que o declínio pode ser indicativo de perda na produção da linguagem possivelmente relacionada à redução nas funções executivas, como memória e atenção. Isso quer dizer que uma pessoa sob efeito de LSD não é capaz de seguir diálogos complexos baseados em raciocínios lógicos, contradizendo técnicas psicoterapêuticas baseadas no diálogo. Por outro lado, a análise descobriu o uso espontâneo maior da linguagem relacionada com o tempo presente, reduzindo o uso do tempo passado. Esse fato contradiz a serventia do discurso psicodélico para técnicas de psicoterapia baseadas na elaboração discursiva sobre vivências e experiências, como a psicanálise."


A partir deste trecho, gostaria de abordar 2 pontos:

1) Os “diálogos complexos baseados em raciocínios lógicos” são úteis e desejáveis para a psicanálise?


2) Devemos manter o método dos primeiros psicanalistas que pesquisaram substâncias psicodélicas, ou seja, fazer o trabalho analítico com o sujeito sob efeito da substância?



Ponto 1. Se para algumas linhas psicoterápicas — ligadas ao ego ou à compreensão de comportamentos — a fala estruturada e linear faz sentido, essa lógica não se aplica à psicanálise clínica pensada a partir da regra principal da associação livre. Logo nos primeiros momentos, nas entrevistas iniciais de uma análise, essa forma de falar e escutar já é evocada pelo analista: “Fale aquilo que passar pela cabeça”.


Não se espera ou se busca uma lógica, uma definição, uma linearidade, ainda que tudo isso possa acontecer em dado momento. Mas, pelo contrário, a escuta está flutuando em busca do espontâneo, do lapso, daquilo que irrompe no discurso e aponta para um outro lugar, que não é aquele do ego e daquilo que se esperava dizer, mas do sujeito inconsciente.


Em “A Descoberta do Inconsciente”, Antonio Quinet ressalta a existência de incertezas na restituição de um sonho, de uma fantasia, de um desejo ou de uma passagem vivida. Partes ficam de fora e partes são adicionadas durante o relato. Para Lacan, “onde ele (o sujeito) duvida… é certo que um pensamento lá se encontra, o que quer dizer que ele (o inconsciente) se revela como ausente”. É nesse lugar que, para Freud, vai se revelar o sujeito. O inconsciente está na parte esquecida, censurada, e é pela fala livre que poderá voltar, talvez em outro momento, de outra forma, em algum deslize ou insight. Ainda que de forma camuflada, cifrada, metaforizada.


Luiz Alfredo Garcia-Roza, na sua “Introdução à Metapsicologia Freudiana 2: A interpretação dos sonhos”, nos mostra que é pela via da associação livre que a ordem do aparelho de linguagem vai se constituir. Sim, aparelho de linguagem, e não aparelho psíquico. Freud não pensa um aparelho vindo no nascimento, apriorístico, mas sim um aparelho de linguagem, que se constitui aos poucos, na relação com outro aparelho de linguagem, ou seja, com alguém que já tenha sido introduzido na ordem simbólica e que possa trazer esse novo sujeito. Nas palavras de Garcia-Roza: “O mundo não é capaz, por si só, de produzir um aparelho de linguagem. É apenas no seio de uma pluralidade de aparelhos de linguagem que um novo aparelho de linguagem poderá surgir”.


A novidade em Freud é a associação entre as associações, umas com as outras. Ou seja, um sonho, um lapso, uma experiência mística ou um relato pessoal importa se pensado a partir de uma lógica de cadeia, de elementos que se compõe entre si, como em uma tecelagem. Nesse sentido o inconsciente psicanalítico não se encontra escondido como um iceberg, pelo contrário, está exposto o tempo todo da linguagem, nas suas formações e contradições, basta alguém para escutar. Aí há margem para o analista intervir, aí há margem para o reconhecimento do sujeito inconsciente, um sujeito em vias de manifestação durante uma experiência psicodélica.


Tófoli, Diament e Gomes, no artigo “Ayahuasca and Psychotherapy: Beyond Integration”, de 2021, discutem que em uma experiência psicodélica ”uma interpretação simbólica do vivido não é absolutamente fundamental” e que “não seria absolutamente necessário entender tudo o que acontece durante o ritual”. Aqui temos algo da maior importância: de fato não é a necessidade que está em jogo, tampouco “entender tudo”, mas sim o desejo de falar e de trabalhar o material experienciado, não pela completa compreensão, mas para discutir aquilo que ressoou, e alojar, tornar verbalizado e reconhecido o que for possível, lidando com o que não se pode colocar em palavras na vivência psicodélica, sem que a angústia remanescente seja impossível de suportar.



Ponto 2. Manter o método dos primeiros psicanalistas que pesquisaram substâncias psicodélicas, ou seja, fazer o trabalho analítico com o sujeito sob efeito da substância?


Em relação a isso, é importante dizer que tivemos dois grandes momentos na pesquisa psicodélica:


1) O primeiro, entre as décadas de 50 a 70 do século passado.


2) O segundo, que vem (grosso modo) de 2000 até o presente momento.


No século passado, centenas de artigos foram publicados, especialmente nos Estados Unidos e Canadá, mas também na Europa e América do Sul, muitos deles utilizando como método ou lente de análise a psicanálise. Psiquiatras com treinamento ou influência psicanalítica foram pioneiros no estudo dos psicodélicos, produzindo dados e conhecimentos de grande importância, com erros e acertos dos quais deveríamos conhecer.


O século 21 por sua vez trouxe a possibilidade e a necessidade de um rigor científico muito diferente do que se praticava outrora, apontando, no campo da ciência psicodélica, para um protagonismo das técnicas de imagem cerebral, das ciências biológicas e neurobiológicas.


Em relação às substâncias, Tófoli, Diament e Gomes, no artigo já citado, argumentam que algumas delas (LSD, mescalina, psilocibina) foram e seguem sendo utilizadas em pesquisas, no século passado e neste — com exceção da ayahuasca que, grosso modo, passou a ser estudada em contexto científico recentemente, ainda que seja usada por populações originárias, para diversos fins, há séculos.


Quanto às estratégias de tratamento, podemos citar 2 principais, muito utilizados no século passado: terapia psicolítica e terapia psicodélica. Os autores apontam que:


“O método psicolítico utiliza pequenas doses para diminuir os mecanismos de defesa e facilitar o acesso às memórias e ao material inconsciente. Foi muito mais utilizado na Europa e está mais próximo dos contextos psicanalíticos. A terapia psicodélica é provavelmente a mais conhecida, desde que se tornou parte do movimento de contracultura na década de 1960. Era mais comum na América do Norte e usava doses maiores em um ambiente apropriado para fornecer experiências de pico e significativas.”


A aproximação, com grande intimidade, diga-se de passagem, da psicanálise com a pesquisa psicodélica, se deu entre as décadas de 50 a 70, e se pautou em grande parte no método psicolítico, fornecendo as substâncias para um grande número de pessoas com condições de saúde muito diversas, desde indivíduos com problemas de adicção até psicóticos, passando por obsessivos e deprimidos. Centenas de artigos e de relatos de sessão foram produzidos.


Esses dados foram coletados em pesquisas nas quais o sujeito recebe a substância do médico e narra, sob efeito e sujeito à grande vulnerabilidade e sensibilidade, aquilo que lhe passa à cabeça: pensamentos, fantasias, desejos, medos, relatos da vida ou eventos específicos e traumáticos. Ou, ainda, como se fazia à época, inclusive sob a batuta de psicanalistas, o paciente passava por sessões de sugestionamento e aconselhamento, como, por exemplo, para abandonar o álcool, as drogas, ou efetuar determinadas mudanças na vida.


Aqui cabem algumas perguntas: é assim que devemos seguir? É dessa forma que o psicanalista pode e deve agir? Se a psicanálise se reaproximar das pesquisas psicodélicas ou tiver de escutar pacientes que fazem uso de psicodélicos, deve ativamente fazer sugestões, direcionar a temática da sessão, esperar falas conexas e lineares, seguir raciocínios lógicos?


Creio que para todas as perguntas a resposta seja não. Se a psicanálise se baseia em associação livre e em narrativa: narrativas de sonhos, de fantasias, de dores, de medos, de traumas, de vivências e de banalidades do cotidiano, por que não usar a mesma lógica para experiências psicodélicas? O psicanalista não precisa fornecer a substância, tampouco acompanhar pessoalmente a experiência, assim como não acompanha nenhuma outra, mas, sim, estar disposto a escutar sem julgamentos e sem preconceitos as dúvidas e medos do paciente que deseja passar por este tipo de vivência e principalmente: escutar e lidar com o riquíssimo material que pode surgir à posteriori, pois uma análise pode também auxiliar na integração da experiência psicodélica.


Além disso, psicodélicos podem gerar abertura para novos temas, novas narrativas, podem ajudar na produção de sonhos e na atividade desejante. Durante o pico de ação, podem auxiliar naquilo que associação livre, o divã, o silêncio e as interpretações do analista buscam realizar: quebrar a lógica do discurso racional consciente e abrir frestas para o sujeito inconsciente. Com tudo isso dito, a “dificuldade com diálogos complexos baseados em raciocínios lógicos” ainda soa como um impedimento?


Autor


Referências

  • Diament M., et al. (2021) Ayahuasca and Psychotherapy: Beyond Integration. In B.C. Labate, & C. Cavnar (Eds) Ayahuasca Healing and Science (Switzerland: Springer).

  • Freud S. (1990) A interpretação dos sonhos (São Paulo, SP: Companhia das Letras).

  • Garcia-Roza L. A. (2008) Introdução à Metapsicologia Freudiana 2: A interpretação dos sonhos (Rio de janeiro, RJ: Jorge Zahar).

  • Oram M. (2018) The Trials of Psychedelic Therapy: Lsd Psychotherapy in America (Baltimore: Johns Hopkins University Press).

  • Quinet A. (2000) A descoberta do inconsciente, (Rio De Janeiro, RJ: Jorge Zahar).

  • Wießner I., et al. (2023) LSD and language: Decreased structural connectivity, increased semantic similarity, changed vocabulary in healthy individuals. European neuropsychopharmacology, 68, 89-104 doi.org/10.1016/j.euroneuro.2022.12.013



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