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Autor convidado

A ibogaína e seus usos atuais no Brasil

Atualizado: 21 de ago. de 2021

Autor convidado: Bruno Ramos Gomes, Ph.D.*

RESUMO: Em meio à efervescente onda psicodélica no mundo atual e à expansão do uso de ayahuasca no Brasil, o uso de ibogaína vem ganhando espaço de forma discreta, principalmente no já pouco regulamentado mercado de tratamentos para dependência de drogas no Brasil. Como estes tratamentos vêm acontecendo no país e quais são os seus efeitos? Apresento aqui um pouco desse cenário e dados da pesquisa de doutorado que acabo de realizar, na qual fiz observação participante em alguns locais de tratamento e acompanhei durante um ano pacientes que passaram pelo tratamento. E abordo outro elemento fundamental ao se discutir os tratamentos com ibogaína: quais os riscos existentes e as formas de reduzi-los.


 

A iboga é uma planta professora de origem africana, e os seus alcaloides (sendo a ibogaína o principal deles) são considerados psicodélicos não clássicos ou atípicos. O seu uso ancestral remete aos pigmeus, povo bosquímano de baixa estatura que habita as florestas tropicais da região onde hoje se situam os países do Gabão, Camarões e Congo. O uso da iboga acontece de duas formas: em doses pequenas no cotidiano, com o objetivo de dar mais vigor e disposição para as atividades diárias, e em doses altas em rituais de iniciação durante a noite, em cultos (Ekomie Obame, 2014). Estes ritos, que duram várias noites seguidas, são momentos em que os iniciados tomam doses altas e ficam deitados, enquanto a comunidade, movida por doses menores e música intensa, dança ao seu redor. Enquanto o uso no dia a dia foi conhecido pelos colonizadores franceses desde o século XIX, os ritos de iniciação se desenvolveram como forma de resistência à violência colonial e aconteciam à noite, na floresta, escondido dos olhares ocidentais (Fernandez, 1982; Fernandez & Fernandez, 2001). Em consequência disso, até meados do século XX a ibogaína era vista apenas como um estimulante e os seus efeitos visionários ainda não eram conhecidos pelos povos do norte global.


Arbusto da espécie Tabernanthe iboga.



Foi apenas em 1962, a partir da experiência de Howard Lotsof – um psiconauta norte-americano, usuário de heroína –, que se descobriu que a ibogaína poderia ser um potente agente no tratamento da dependência de substâncias. Depois de tomar a ibogaína, ter uma intensa viagem e se perceber sem vontade e sem crise de abstinência por conta da heroína, Lotsof virou um grande divulgador da planta e trabalhou até o fim da vida para desenvolver uma rede de tratamento que hoje em dia se estende por várias partes do mundo (Alper et al., 2001).


Howard Lotsof foi o fundador da Global Ibogaine Therapist Alliance, uma organização sem fins lucrativos dedicada a apoiar os usos sacramentais e terapêuticos da iboga por meio de iniciativas de sustentabilidade, pesquisa científica, educação e defesa.



Estes tratamentos acontecem num contexto já ocidentalizado, em quartos de clínicas, hospitais ou hotéis, sem música e ritual e com parâmetros de cuidado advindos da clínica médica. Ao mesmo tempo, a ibogaína foi proibida em alguns países, como nos Estados Unidos, sendo classificada como uma droga com potencial de abuso elevado e sem efeitos terapêuticos, junto com a cocaína e a maconha. Esta sua inclusão na dinâmica da Guerra às Drogas infelizmente dificultou muito o seu uso e as pesquisas sobre os seus efeitos.


No Brasil, no entanto, a ibogaína era praticamente desconhecida até o final dos anos 2010. Até hoje não é proibida como uma droga, mas também não é registrada como um medicamento, ocupando um limbo em meio a estas legislações. Na última década, porém, houve uma expansão de seu uso no país, principalmente após uma pesquisa com pacientes brasileiros mostrando resultados positivos. Esta pesquisa, realizada por uma equipe ligada ao Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD), da Universidade Federal de São Paulo, verificou um aumento significativo no tempo de abstinência após o tratamento com ibogaína, com mais de 60% dos entrevistados sem uso de drogas no momento da entrevista – em média, de 5 a 8 meses após o tratamento (Schenberg et al., 2014). Efeitos como esses são impressionantes na área de cuidado aos usuários de álcool e outras drogas, em que boa parte dos tratamentos oferecidos têm pouca efetividade. Com a divulgação desses dados, aumentou a procura pelo tratamento e também a sua oferta.


Na pesquisa que realizei no meu doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pude encontrar a oferta de ibogaína em diversos formatos no país atualmente. Mesmo estando neste limbo jurídico, é possível que um profissional médico prescreva ao seu paciente e este importe a ibogaína como uma medicação em seu nome, a partir de uma portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, 2008). Não é permitida a sua comercialização no país, propaganda sobre o tratamento e nem promessa de cura.


No Brasil, não é permitida a comercialização da iboga, propaganda sobre o tratamento e nem promessas de cura (Foto: Nigel Dodds / Alamy Stock Photo).



Boa parte dos locais de tratamento, porém, não seguem estes poucos parâmetros. O tratamento é oferecido em contextos muito variados, indo desde um hospital, passando por clínicas e comunidades terapêuticas, até tratamentos bem informais, feitos de forma caseira geralmente por pessoas que se recuperaram da dependência de drogas com o uso da ibogaína. Alguns locais integram seu uso com o de outras plantas de origem ameríndia, como a ayahuasca, o rapé ou a sananga. Existe também a oferta de tratamentos que vão até a casa do paciente ou microdoses vendidas pelos Correios. A duração varia de um a cinco dias de tratamento, com diferentes formas de extração e concentração da ibogaína e de outros alcaloides da planta.


Os efeitos observados nos estudos já realizados incluem redução de sintomas de abstinência e de fissura, depois de um período de algumas horas de intensa alteração da percepção de si e do mundo, trazendo lembranças, pensamentos e sonhos de forma vívida à consciência (Camlin et al., 2018). Na minha pesquisa de doutorado acompanhei doze pacientes durante um ano, e pude observar efeitos incríveis em pacientes já desesperançados, depois de dezenas de internações para tratamento de dependência. No entanto, não se trata de uma pílula mágica que resolveria a dependência por si só, como muitos gostariam. A substância também apresenta riscos que precisam ser bem manejados.


Até 2018, foram reportadas globalmente 33 mortes durante ou logo após o tratamento com ibogaína. De acordo com análises de uma parte destes óbitos, aparentemente este risco está associado a alguma questão clínica preexistente ou ao uso de drogas durante ou logo após a ibogaína. Os dados apontaram a presença de alguma doença hepática, úlcera péptica, neoplasia cerebral, hipertensão ou outras doenças cardiovasculares (Corkery, 2018).


Nas quase cinco décadas em que vem realizando tratamentos, a subcultura de tratamento com ibogaína desenvolveu protocolos em que afirmam ser seguro o seu uso, como o apresentado pela Global Ibogaine Therapy Alliance em 2015 (GITA, 2016). Quer dizer, com a triagem criteriosa e a preparação adequada seria possível o uso da ibogaína sem arriscar a vida e a saúde do paciente.


É fundamental o desenvolvimento de mais pesquisas que ajudem a desenvolver estes protocolos de uso e mudanças na legislação que possibilite a sua utilização, mas que também proteja o paciente dos riscos envolvidos. Em um campo com a necessidade de novas respostas, a ibogaína apresenta caminhos diferentes dos já trilhados pelos pacientes em seus tortuosos percursos em busca de uma vida mais satisfatória e tranquila.


 

*Bruno Ramos Gomes é psicólogo, mestre em Saúde Pública pela FSP-USP e doutor em Saúde Coletiva pela UNICAMP. Pesquisou o uso de ayahuasca para recuperação de população em situação de rua, e o uso de ibogaína no tratamento da dependência de drogas. Trabalha desde 2010 com psicoterapia associada ao uso de ibogaína, ayahuasca e outros psicodélicos no tratamento de dependência.



REFERÊNCIAS


Alper, K. R., Beal, D., & Kaplan, C. D. (2001). Chapter 14 A contemporary history of ibogaine in the United States and Europe. In The Alkaloids: Chemistry and Biology (Vol. 56, p. 249–281). Elsevier. https://doi.org/10.1016/S0099-9598(01)56018-6



Camlin, T. J., Eulert, D., Thomas Horvath, A., Bucky, S. F., Barsuglia, J. P., & Polanco, M. (2018). A phenomenological investigation into the lived experience of ibogaine and its potential to treat opioid use disorders. Journal of Psychedelic Studies, 2(1), 24–35. https://doi.org/10.1556/2054.2018.004


Corkery, J. M. (2018). Ibogaine as a treatment for substance misuse: Potential benefits and practical dangers. In Progress in Brain Research (Vol. 242, p. 217–257). Elsevier. https://doi.org/10.1016/bs.pbr.2018.08.005


Ekomie Obame, L. (2014). Qu’est-ce que le bwiti? Regard croisé sur une religion naturelle africaine. L’Harmattan.


Fernandez, J. W. (1982). Bwiti: An ethnography of the religious imagination in Africa. Princeton University Press.


Fernandez, J. W., & Fernandez, R. L. (2001). Chapter 13 “Returning to the path”: The use of iboga[ine] in an equatorial African ritual context and the binding of time, space, and social relationships. In The Alkaloids: Chemistry and Biology (Vol. 56, p. 235–247). Elsevier. https://doi.org/10.1016/S0099-9598(01)56017-4


GITA. (2016). Clinical Guidelines for Ibogaine-Assisted Detoxification—The Global Ibogaine Therapy Alliance. https://www.ibogainealliance.org/guidelines/


Schenberg, E. E., de Castro Comis, M. A., Chaves, B. R., & da Silveira, D. X. (2014). Treating drug dependence with the aid of ibogaine: A retrospective study. Journal of Psychopharmacology, 28(11), 993–1000. https://doi.org/10.1177/0269881114552713



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