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  • Daiane Momo Daneluz e Cristina A. Jark Stern

Ayahuasca e medo: como o chá ajuda a reescrever memórias traumáticas

Atualizado: 26 de set. de 2023



Resumo: O artigo detalha os caminhos de um estudo — vencedor do Prêmio Juarez Aranha Ricardo (JAR), de neurociência — que investigou o efeito da ayahuasca sobre memórias de medo em animais, revelando, pela primeira vez, que a bebida tem o potencial de amenizar memórias de medo originais. Os efeitos foram percebidos em doses baixas, quando administradas 20 minutos antes ou 3 horas após a evocação da memória de medo. O texto destaca ainda a importância dessa descoberta para o tratamento de doenças como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), uma condição de difícil tratamento, que tem memórias traumáticas no seu cerne.


 

Em 2018, pesquisando material para alguns casos que vinha atendendo na clínica de

psicologia, me deparei com artigos sobre psicodélicos e os seus efeitos promissores

sobre a saúde mental. Fiquei deveras intrigada. Entre esses artigos, brilharam para mim

aqueles sobre a ayahuasca, uma bebida psicodélica tradicional dos povos indígenas

amazônicos, feita da cocção da combinação das plantas Psychotria viridis e

Banisteriopsis caapi. Eu conhecia seus mistérios de longe, mas ainda não era muito

familiar com a exploração científica dessa bebida. Foi assim que comecei um mergulho

nesse tópico que me levou até a professora doutora Cristina Stern, do Departamento de

Farmacologia da Universidade Federal do Parana (UFPR), que já trabalhava com o tema. Logo, comecei o mestrado com ela dentro do laboratório Fear Memory Lab em 2019.


Juntas, encontramos vários estudos com a ayahuasca e seus componentes, como

DMT e beta-carbolinas, mostrando efeitos sobre depressão e ansiedade, abuso de

drogas em humanos (Gonçalves et al., 2023) e em modelos animais (Daldegan-Bueno et al., 2023). Isso nos deixou animadas, já que a ayahuasca parece agir em uma ampla gama de questões de saúde mental. Assim, entre todas as potencialidades da bebida, identificamos um espaço que tinha sido pouco explorado: o seu efeito sobre memórias de medo.


Esse tipo de memória está presente, sobretudo, em doenças como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), no qual as memórias traumáticas ocupam um espaço central, existindo ainda muita dificuldade em intervir diretamente nelas. Por isso, escolhemos olhar para um ponto bem específico dos processos de memória: a reconsolidação.


Esse é o ponto no qual você pode estar se perguntando: o que é a reconsolidação? A resposta simples é que essa é uma janela de instabilidade de uma memória (cerca de 6 horas) depois dela ter sido brevemente evocada. Durante este período, estudos apontam que intervenções farmacológicas e/ou comportamentais podem reforçar ou enfraquecer essa memória, atualizando desse modo, a memória original. Você pode ver os processos de aquisição e atualização de memórias no esquema abaixo:


Legenda: Etapas da memória de medo. A representação esquemática acima ilustra o ciclo de formação e atualização das memórias relacionadas ao medo. As setas de coloração roxa destacam momentos de transição e instabilidade, nos quais as memórias se encontram suscetíveis a intervenções de natureza farmacológica e comportamental. A) Reflete o estágio de aquisição da memória, que emerge a partir da exposição a um estímulo aversivo. Em animais de laboratório pode ser um choque leve nas patas. Isso culmina na construção de uma memória ainda incipiente, caracterizada por sua fragilidade inicial. B) A etapa subsequente envolve a consolidação, um processo necessário para estabilizar e assegurar o armazenamento duradouro da memória adquirida. C) Uma memória previamente consolidada pode ser desestabilizada através de uma breve evocação. D) A ativação desse processo de evocação desencadeia a reconsolidação, essencial para a reestabilização e rearmazenamento da memória. E) No contexto de uma evocação prolongada, entra em cena o processo de extinção, conduzindo à formação de uma nova memória. Essa memória recém-formada possui o potencial de sobrepujar a memória de medo original. F) Por ser uma memória recente, a memória de extinção também requer passagem pelo processo de consolidação, assegurando sua retenção a longo prazo. Esse esquema foi desenvolvido com base em Sandrini et al., 2018.



As abordagens terapêuticas cognitivo-comportamentais e técnicas de exposição prolongada são os métodos de tratamento psicológico mais utilizados para tratar o TEPT. Estes métodos fundamentam-se na premissa da extinção das memórias aversivas, alcançadas através da reintrodução gradual a elementos relacionados ao trauma, dentro de um contexto seguro e controlado. Por exemplo, uma pessoa que sofreu um acidente de carro e que desenvolveu TEPT pode ser gradualmente incentivada a entrar em contato com o assunto, conversando sobre o tema, revendo elementos que estejam relacionados ao evento, como imagens, sons, etc. Fazendo assim uma nova associação desses elementos que lembram o trauma, mas, desta vez, em um ambiente seguro e protegido, entendendo que eles não representam mais perigo. Isso gera uma nova representação mnemônica que entra em competição direta com a memória de medo condicionada original, resultando na diminuição das respostas de medo.


Contudo, embora esses tratamentos psicológicos apresentem notáveis méritos, eles possuem algumas limitações, como a adesão inconsistente aos protocolos terapêuticos e a possibilidade de ressurgimento dos sintomas com o passar do tempo, já que a memória original do trauma permanece inalterada (Imel et al., 2013; Vervliet et al., 2013). Além disso, os tratamentos farmacológicos existentes são apenas parcialmente eficazes em relação aos sintomas do TEPT.


Isso mostra a importância de encontrar alternativas de tratamento que possam atualizar, ou reescrever memórias traumáticas. Por todas essas razões, investigamos o efeito da ayahuasca em memórias de medo em ratos. Esse trabalho desenvolvido durante o período sombrio da pandemia, rendeu um prêmio nacional de neurociências (Prêmio JAR) no congresso da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC), em 2021, e uma publicação do artigo “Evidence on the impairing effects of Ayahuasca on fear memory reconsolidation na revista Psychopharmacology” (Daneluz et al., 2022).


Legenda: Artigo elaborado por Daiane Momo Daneluz, Jeferson Machado Batista Sohn, Gabriela O Silveira, Maurício Yonamine, Cristina Aparecida Stern e publicado na revista Psychopharmacology.



Antes de explicar os resultados encontrados, é importante mencionar por qual motivo os testes foram feitos em ratos e não diretamente em pessoas. Os testes pré-clínicos, como os realizados no nosso trabalho, são importantes para garantir a segurança e o potencial terapêutico antes de testes com seres humanos, ou seja, os testes clínicos.


No nosso trabalho, utilizamos ratos machos condicionados a apresentar medo diante de um contexto. Tratamos esses animais com três doses de ayahuasca (240, 120 ou 60 mg/Kg) ou água, em dois momentos. Como a reconsolidação dura cerca de 6 horas, escolhemos um momento inicial desse processo (20 minutos antes da evocação da memória) e um mais tardio (3 horas depois da evocação da memória) para administrar ayahuasca ou água. A dose de 240 mg/Kg se aproxima da dose utilizada em rituais, porém, nos protocolos de memória de medo que testamos, ela não alterou os parâmetros de medo dos animais diante do contexto condicionado.


Na sequência, testamos as doses menores que surpreendentemente trouxeram resultados bem interessantes: as doses de 120 e 60 mg/kg foram capazes de diminuir os parâmetros de memória de medo nos animais quando comparados aos grupos que receberam água. Como a dose 60 mg/kg apresentou resultados mais robustos, assim seguimos o restante dos experimentos com ela.


De maneira geral, observamos que a ayahuasca, na dose de 60 mg/Kg, prejudicou a reconsolidação da memória de medo quando administrada 20 minutos antes ou 3 horas após a evocação da memória. Aqui é necessário esclarecer que “prejudicar a reconsolidação da memória do medo” significa uma coisa boa, pois, de certa forma, a memória de medo foi atualizada e armazenada, tendo menos medo associado.


No estudo, a menor dose de ayahuasca prejudicou a reconsolidação da memória de medo nos animais experimentais.



Nós também testamos e não encontramos efeito ansiolítico na dose de 60 mg/Kg, reforçando que esse efeito foi sobre a memória e não sobre a ansiedade. Além disso, é válido ressaltar que, durante a evocação da memória, a ayahuasca não alterou a expressão de medo.


Realizamos ainda outros testes que ajudam a confirmar que o efeito foi realmente sobre a reconsolidação. Por exemplo, quando omitimos a sessão de evocação de memória, o efeito da ayahuasca sobre a reconsolidação foi abolido, já que a reconsolidação depende da evocação da memória. Imagine uma pessoa que passou por um trauma. A ayahuasca só interferiria na reconsolidação, diminuindo o medo/trauma, se fosse administrada 20 min antes ou 3 h depois que pessoa traumatizada passasse por uma sessão de reexposição breve a elementos do trauma. Se essa reexposição não existir, a ayahuasca não tem efeito sobre a reconsolidação da memória de medo. Vimos também que os efeitos do tratamento com o chá 20 minutos antes ou 3 horas após a evocação da memória duraram pelo menos 22 dias, não mostrando recuperação espontânea da memória de medo. Ou seja, ambos os grupos testados não mostram retorno do medo 22 dias depois, ao final do experimento.


É bastante interessante que a menor dose tenha sido efetiva, principalmente se pensarmos nas possíveis aplicações clínicas, como a utilização da ayahuasca em psicoterapia assistida por psicodélicos. Uma dose menor pode contribuir para menos efeitos colaterais e menor desconforto gastroinstestinal, algo comumente relatado por usuários de ayahuasca.


Entretanto, cabe aqui alertar que, mesmo que os resultados sejam animadores, isso não significa que qualquer pessoa com histórico de trauma possa sair tomando ayahuasca. Inclusive, sem cuidado e orientação o uso de qualquer substância psicodélica pode piorar o quadro. Ainda há a necessidade de estudos para entender por quais vias a ayahuasca causa tais efeitos sobre as memórias; se esses efeitos realmente podem se estender para a população humana; quais os outros desdobramentos de uma baixa dose da bebida; e qual o melhor momento de administração; além disso, é preciso ainda definir a padronização de protocolos de reconsolidação para humanos e protocolos de integração dos conteúdos que podem aparecer durante a experiência com a substância.


Ainda temos chão pela frente, mas os avanços das pesquisas desse período do renascimento psicodélico mostram cenários promissores no horizonte.



Autoras





Referências

  • Daldegan-Bueno, D., Simionato, N. M., Favaro, V. M., & Maia, L. O. (2023). The current state of ayahuasca research in animal models: A systematic review. Progress in Neuro-Psychopharmacology & Biological Psychiatry, 125, 110738. https://doi.org/10.1016/j.pnpbp.2023.110738

  • Daneluz, D. M., Sohn, J. M. B., Silveira, G. O., Yonamine, M., & Stern, C. A. (2022). Evidence on the impairing effects of Ayahuasca on fear memory reconsolidation. Psychopharmacology, 239(10), 3325–3336. https://doi.org/10.1007/s00213-022-06217-2

  • Gonçalves, J., Luís, Â., Gallardo, E., & Duarte, A. P. (2023). A Systematic Review on the Therapeutic Effects of Ayahuasca. Plants, 12(13), 2573. https://doi.org/10.3390/plants12132573

  • Imel, Z. E., Laska, K., Jakupcak, M., & Simpson, T. L. (2013). Meta-analysis of dropout in treatments for posttraumatic stress disorder. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 81(3), 394–404. https://doi.org/10.1037/a0031474

  • Sandrini, M., Caronni, A., & Corbo, M. (2018). Modulating Reconsolidation With Non-invasive Brain Stimulation—Where We Stand and Future Directions. Frontiers in Psychology, 9, 1430. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2018.01430

  • Vervliet, B., Craske, M. G., & Hermans, D. (2013). Fear extinction and relapse: State of the art. Annual Review of Clinical Psychology, 9, 215–248. https://doi.org/10.1146/annurev-clinpsy-050212-185542

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