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Foto do escritorLucas Maia

Os efeitos terapêuticos dos psicodélicos dependem dos seus efeitos subjetivos?

Atualizado: 4 de set. de 2021




Por Lucas Maia, PhD.


 

Recentemente, essa pergunta movimentou debates entre cientistas do campo psicodélico. A discussão ganhou evidência após a publicação de um artigo na revista Nature, no final de 2020, em que pesquisadores da Universidade da Califórnia verificaram que uma substância semelhante à ibogaína, mas sem propriedades psicodélicas, produziu efeitos antidepressivos e a redução do consumo de álcool e heroína em testes em roedores (Cameron et al., 2021). Isso pode sugerir que os efeitos terapêuticos da ibogaína – e, talvez, de outros psicodélicos também – não dependam dos seus efeitos subjetivos, ou seja, dos efeitos psicológicos percebidos por cada indivíduo, incluindo, por exemplo, alterações de percepção, experiências visuais, emocionais e espirituais ou místicas.


Contextualizando: a ibogaína é uma substância psicodélica encontrada na planta Tabernanthe iboga, a qual é utilizada ritualisticamente em países do oeste da África como um enteógeno. A partir da década de 1960, usuários de heroína nos Estados Unidos observaram que tinham menos vontade de usar a droga e menos sintomas de abstinência após experiências com ibogaína. Isso levou, mais tarde, ao desenvolvimento de estudos sobre o seu potencial terapêutico no tratamento da dependência de opioides e outras substâncias – inclusive, no Brasil (Schenberg et al., 2014). No entanto, sabe-se que a ibogaína pode gerar efeitos sobre o funcionamento cardíaco e desencadear quadros potencialmente fatais, o que torna o uso terapêutico da substância particularmente delicado, demandando acompanhamento médico e hospitalar junto ao acompanhamento terapêutico.


Planta da espécie Tabernanthe iboga, apresentando vários frutos.

Planta da espécie Tabernanthe iboga.



Pois bem, voltando à Califórnia, os pesquisadores buscaram isolar os efeitos terapêuticos e anular os efeitos psicodélicos e cardíacos da ibogaína. Isso oferece uma vantagem para o tratamento de transtornos psiquiátricos, visto que a aplicabilidade da terapia psicodélica em larga escala populacional apresenta uma série de desafios, como o alto custo oriundo da necessidade de especialistas treinados para o acompanhamento antes, durante e depois das longas sessões com o uso da substância. Além disso, uma parcela substancial das pessoas com depressão ou outros transtornos psiquiátricos, que poderiam se beneficiar da terapia com psicodélicos, não gostariam de passar pela intensidade de uma experiência psicodélica completa, que pode ser emocionalmente desafiadora e impactante. No caso de pessoas com transtornos psicóticos, como a esquizofrenia, para as quais o uso dos psicodélicos propriamente ditos é contraindicado, compostos não-psicodélicos poderiam constituir novas opções terapêuticas.


Mas, se os efeitos subjetivos foram anulados, o que explicaria os efeitos terapêuticos da versão não-psicodélica da ibogaína? Os pesquisadores acreditam que os efeitos ocorram por meio de um aumento da plasticidade neuronal: a capacidade de induzir modificações funcionais e estruturais sobre a configuração dos neurônios – por exemplo, gerar novas sinapses e ramificações – e, assim, modificar circuitos neurais disfuncionais envolvidos nos transtornos mentais. Essa propriedade de aumentar a plasticidade neuronal já foi verificada também para outras substâncias psicodélicas em estudos in vitro e em roedores – e a pesquisa brasileira ocupa lugar de destaque nesse campo (para saber mais, assista essa aula).


Ilustração sobre plasticidade neuronal com exemplos de modificações que podem ocorrer nos diferentes níveis estruturais: Formação ou eliminação de neurônios, formação ou eliminação de ramos de neurônio, formação ou eliminação de sinapses e regulação da força das mesmas, alteração da expressão gênica.

Plasticidade neuronal: Exemplos de modificações que podem ocorrer nos diferentes níveis estruturais.



No entanto, a história não é tão simples. Embora os estudos em animais não humanos forneçam fortes indícios de que psicodélicos promovem plasticidade neuronal, ainda não sabemos ao certo se isso também ocorre em humanos e que implicações e efeitos teriam. Da mesma forma, serão necessários estudos em humanos para confirmar os efeitos terapêuticos da ibogaína não-psicodélica, que foi batizada como tabernanthalog, algo como “tabernantólogo” em português, uma mistura entre o nome do gênero da planta (Tabernanthe) e “análogo”, por se tratar de um composto com estrutura química semelhante à ibogaína.


Por outro lado, uma série de evidências de estudos em humanos indica que os efeitos subjetivos dos psicodélicos desempenham um papel essencial para a ocorrência de efeitos terapêuticos duradouros. Estes estudos se baseiam em correlações, ou seja, cálculos estatísticos que demonstram a relação mútua entre variáveis – nesse caso, que os efeitos terapêuticos têm mais chance de ocorrer naquelas pessoas que experimentaram efeitos subjetivos mais intensos. Dentre os efeitos subjetivos que estão mais fortemente correlacionados aos efeitos terapêuticos destaca-se a experiência mística, assunto que já foi explorado em outro texto. Estudos clínicos demonstram que a experiência mística se correlaciona a melhoras em diversos indicadores de saúde mental e qualidade de vida (Yaden & Griffiths, 2021).


Pessoa de pé na praia, de braços abertos, no momento do pôr do sol.

Evidências indicam que os efeitos subjetivos dos psicodélicos desempenham papel essencial na ocorrência de efeitos terapêuticos duradouros.



Contudo, correlações não são provas cabais de que uma coisa causa a outra. Elas são baseadas em proporções, chance, etc. Mas nem todas as pessoas que tiveram experiências místicas após o uso de psicodélicos observaram efeitos terapêuticos significativos, e vice-versa, de modo que outros fatores ainda pouco compreendidos podem estar envolvidos. Um dos exemplos mais intrigantes envolve o MDMA, que embora não produza experiências místicas na maior parte das pessoas, tem demonstrado um grande potencial terapêutico para o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático. É possível que outros tipos de efeitos subjetivos promovidos pelo MDMA, como efeitos emocionais e cognitivos, em conjunto com efeitos sobre a plasticidade neuronal, expliquem os seus efeitos terapêuticos (Yazar-Klosinski & Mithoefer, 2017).


Na verdade, esse raciocínio se aplica aos psicodélicos de forma geral. Estudos com psilocibina, LSD, ibogaína, ayahuasca, quetamina e MDMA verificam uma série de efeitos subjetivos e processos psicológicos que não estão ligados necessariamente à experiência mística, como mudanças sobre a percepção de si, catarses emocionais, sentimentos positivos e sentimentos de conexão, ressignificação, flexibilidade cognitiva e insights psicológicos (Breeksema et al., 2020).


No fim das contas, as duas linhas de pensamento e pesquisa concordam que a combinação entre efeitos neurobiológicos, como o aumento da plasticidade neuronal, e efeitos subjetivos provavelmente confira efeitos terapêuticos mais consistentes e duradouros. Talvez, futuramente, a psiquiatria se beneficie destas duas opções farmacológicas: compostos que reorganizam o funcionamento e estrutura cerebral, acompanhados ou não de experiências psicodélicas.


 

Referências


Breeksema, J. J., et al. (2020). Psychedelic Treatments for Psychiatric Disorders: A Systematic Review and Thematic Synthesis of Patient Experiences in Qualitative Studies. CNS Drugs, 34(9), 925–946. https://doi.org/10.1007/s40263-020-00748-y


Cameron, L. P., et al. (2021). A non-hallucinogenic psychedelic analogue with therapeutic potential. Nature, 589(7842), 474–479. https://doi.org/10.1038/s41586-020-3008-z


Olson, D. (2020). The subjective effects of psychedelics may not be necessary for their therapeutic impact. ACS Pharmacology & Translational Science. https://doi.org/10.1021/acsptsci.0c00192


Schenberg, E. E., et al. (2014). Treating drug dependence with the aid of ibogaine: a retrospective study. Journal of Psychopharmacology, 28(11), 993–1000. https://doi.org/10.1177/0269881114552713


Yaden, D. B., & Griffiths, R. R. (2020). The subjective effects of psychedelics are necessary for their enduring therapeutic effects. ACS Pharmacology & Translational Science. https://doi.org/10.1021/acsptsci.0c00194


Yazar-Klosinski, B. B., & Mithoefer, M. C. (2017). Potential Psychiatric Uses for MDMA. Clinical Pharmacology and Therapeutics, 101(2), 194–196. https://doi.org/10.1002/cpt.565

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2 Comments


lucasohmaia
Feb 18, 2021

Muito bacana suas considerações, Marcelo! Obrigado pelo comentário, isso agrega bastante para a discussão. Esse tema abrange vários aspectos que podem ser abordados, comparados, refletidos... Pelo tamanho do texto, não deu para aprofundar muito; e a intenção foi oferecer uma visão geral do assunto mesmo. Legal você trazer essa perspectiva clínica. Um abraço

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Marcelo Falchi
Marcelo Falchi
Feb 16, 2021

Muito esclarecedor! Faz todo sentido na perspectiva mente-cérebro. Parabéns, Lucas!

Isso trás temas como monismo e dualismo para a discussão. A mim faz todo sentido que a experiência psicodélica em si seja mais eficaz do que qualquer abordagem puramente baseada em aspectos farmacológicos. Uma possibilidade de trabalhar o cérebro de forma mais plástica, em seus aspectos formais, simultâneo a uma experiencia subjetivada psicodélica galvanizaria a possibilidade de intervenção (ou talvez, a eficácia) no aspecto formal-cerebral conferindo o conteúdo (ou o veio simbólico) dessa díade.

Um exemplo simples para essa relação bidirecional seria o paralelo clínico observado quando o processo terapêutico d’algum paciente com transtorno mental se dá com intervenções psicofarmacologicas apoiadas a técnicas psicoterápicas e habilidades clínicas não apenas biointervencionistas.

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