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  • Lucas Maia e Ana Cláudia Garcia

Terapias psicodélicas para pessoas com doenças graves

Atualizado: 17 de abr. de 2022



Resumo: Uma revisão sistemática de estudos sobre o uso de terapias assistidas com psicodélicos para o controle de sintomas em pessoas com doenças graves e/ou terminais aponta o potencial terapêutico dessas terapias para essa população. O estudo destaca benefícios em relação a sintomas de natureza física, psicológica, social e existencial/espiritual, além de avaliar o perfil de segurança e os efeitos adversos verificados nos estudos clínicos revisados.


 

Certo dia, em maio de 2020, em plena emergência da pandemia de Covid-19, eu estava trabalhando em casa, em quarentena como quase todo mundo naquela época, quando recebo um e-mail de uma pesquisadora interessada nos resultados do estudo que desenvolvi durante o meu doutorado, a respeito do uso da ayahuasca por pessoas em tratamento de doenças graves (sobre o qual já escrevi aqui no CP). A pesquisadora era a Dra. Ana Cláudia Mesquita Garcia, enfermeira e professora da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), em Minas Gerais, onde coordena um centro de pesquisa em cuidados paliativos.


A troca de e-mails rendeu. Naquela mesma semana, já estávamos planejando um estudo de revisão sobre o potencial terapêutico de psicodélicos em pessoas com doenças graves e as perspectivas para a terapia com psicodélicos no campo dos cuidados paliativos.


Dois anos de muito trabalho se passaram desde então, até a publicação do primeiro fruto dessa empreitada. A revisão sistemática que desenvolvemos foi aceita na revista Journal of Pain and Symptom Management, uma das mais conceituadas na área de cuidados paliativos, o que nos deixou muito contentes, tendo em vista que a revista nunca havia publicado trabalhos sobre psicodélicos antes. Isso reflete o crescimento do campo, que tem tido uma maior aceitação e interesse por parte de profissionais de saúde.


Revisão sistemática elaborada por Lucas Maia, Yvan Beaussant e Ana Cláudia Garcia publicada na revista Journal of Pain and Symptom Management.



Antes de explicarmos melhor sobre o desenvolvimento e os resultados desse estudo de revisão, vale a pena esclarecer o que são cuidados paliativos. Trata-se de uma abordagem de cuidados realizada por uma equipe de saúde multiprofissional, que tem como objetivo melhorar a qualidade de vida e aliviar o sofrimento (físico, psicológico, social e espiritual) de pessoas com doenças graves, bem como de seus familiares e cuidadores. A partir do momento em que se identifica uma condição grave, progressiva e irreversível, o paciente, os familiares e a equipe de saúde — a partir de um processo de tomada de decisão compartilhada — podem optar por mudar o foco do tratamento. Uma vez que o tratamento curativo deixa de surtir efeito na evolução natural da doença, é possível optar por uma abordagem de cuidados – paliativos – que vise o conforto, o controle dos sintomas, o alívio do sofrimento e a qualidade de vida do paciente, até que a morte chegue de forma natural.


Voltando a falar sobre a revisão propriamente dita, nós buscamos na literatura científica todos os estudos clínicos que avaliaram os efeitos de substâncias psicodélicas em pessoas com doenças graves, como câncer e doenças neurodegenerativas, por exemplo. Dentro de um conjunto de quase seis mil artigos, aplicando filtros para selecionar apenas os artigos que se encaixavam no perfil de estudo que estávamos buscando, chegamos a 20 estudos que utilizaram psicodélicos clássicos ou atípicos (exceto cannabis ou canabinoides, que escolhemos abordar separadamente em outro estudo futuro).


Nove estudos (45%) utilizaram LSD, cinco (25%) aplicaram psilocibina, dois (10%) usaram dipropiltriptamina (DPT) e outros dois estudos independentes utilizaram cetamina ou MDMA. No total, 640 pacientes receberam tratamento com psicodélicos em conjunto com psicoterapia. A maior parte dos estudos (75%) envolvia pacientes com câncer, enquanto os demais estudos (25%) envolviam pacientes com doenças como AIDS, doenças cardiovasculares, hepáticas, pulmonares ou renais, herpes zoster, doença de Parkinson e outras doenças neurológicas.


Dos 20 estudos selecionados para a revisão, nove estudos (45%) utilizaram LSD, cinco (25%) aplicaram psilocibina, dois (10%) usaram dipropiltriptamina (DPT) e outros dois estudos independentes utilizaram cetamina ou MDMA.




Aproximadamente metade dos estudos foram conduzidos entre as décadas de 1960 e 1970, durante a primeira onda de interesse científico sobre o potencial terapêutico dos psicodélicos em psiquiatria. A pesquisa nessa área ficou praticamente congelada entre as décadas de 1980 e 2000, tendo apenas um estudo publicado em 1985. Após 2010, com o ressurgimento das pesquisas clínicas com psicodélicos, outros oito estudos foram realizados, agora utilizando métodos mais robustos, como o ensaio randomizado controlado por placebo.


Tomados em conjunto, os resultados dos estudos analisados indicam efeitos terapêuticos da terapia com psicodélicos para o controle de sintomas de ordem física, psicológica, social e existencial/espiritual. No domínio físico, destacam-se efeitos de redução da dor e melhora no sono. No domínio psicológico, verificou-se principalmente a redução de sintomas psiquiátricos, como ansiedade e depressão, que têm uma alta prevalência em pessoas com doenças graves. Quanto ao domínio social, os resultados indicaram que, após o uso das terapias psicodélicas, as relações interpessoais dos pacientes tornaram-se mais próximas, mais francas, honestas e abertas, favorecendo a empatia e a sociabilidade. No domínio existencial/espiritual, o tratamento com psicodélicos levou à diminuição do medo da morte, desesperança e sofrimento existencial, bem como maior aceitação e entrega, ressignificação da doença e da vida, e maior bem-estar espiritual.


Os resultados dos estudos analisados indicam efeitos terapêuticos da terapia com psicodélicos para o controle de sintomas de ordem física, psicológica, social e existencial/espiritual.




Os efeitos adversos observados, presentes em onze estudos (55%), foram de intensidade leve a moderada, transitórios e de resolução espontânea. Efeitos físicos incluíram náuseas e vômitos, diarreia, boca seca, dores de cabeça, tremores, dificuldades para dormir, palpitações, fadiga, dificuldade em respirar e agitação. Efeitos psicológicos incluíram ansiedade, medo, pânico, alucinações, imagens ou fantasias ameaçadoras, raiva, desconforto emocional, pensamento anormal e recorrência de memórias traumáticas.


A partir da análise que fizemos dos resultados, sugerimos que é visível o potencial terapêutico das abordagens psicoterápicas com psicodélicos para o controle de sintomas em pessoas com doenças graves. Contudo, a escassez e a falta de acesso à formação para atuação profissional no campo das terapias assistidas por psicodélicos configura-se um desafio para o avanço desse tipo de intervenção, especialmente em países do sul global.


Este é um ponto importante a ser discutido, considerando que em nosso estudo identificamos que o vínculo estabelecido entre paciente e terapeuta foi considerado um fator vital para resultados positivos na maior parte dos estudos. Isso reforça a necessidade de programas de treinamento adequado não só para terapeutas, mas também para outros profissionais de saúde, considerando uma perspectiva em que o uso terapêutico de psicodélicos se torne uma realidade em contextos clínicos e de pesquisa.


A terapia psicodélica para pessoas com doenças graves e terminais foi um dos temas mais promissores na primeira onda de estudos clínicos sobre o potencial terapêutico de substâncias como o LSD entre as décadas de 1960 e 1970. Assim, de certa forma, não é de se estranhar que tais estudos estejam ressurgindo com uma relevância significativa nos dias atuais, parte de um período que tem sido chamado de “renascença psicodélica”. Mais estudos precisam avaliar a segurança e a eficácia das terapias psicodélicas para pacientes com doenças graves, utilizando amostras maiores, diferentes condições clínicas e patologias, para que possamos compreender melhor o perfil farmacológico e os efeitos psicológicos dessas terapias nas populações em questão e, assim, determinar os protocolos mais adequados para cada condição.


 

Autores




Referências


Maia, L. O., Beaussant, Y., & Garcia, A. C. M. (2022). The Therapeutic Potential of Psychedelic-assisted Therapies for Symptom Control in Patients Diagnosed With Serious Illness: A Systematic Review. Journal of Pain and Symptom Management, S0885-3924(22)00060-4. Advance online publication. https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2022.01.024


Garcia, A. C. M., & Maia, L. D. O. (2022). The therapeutic potential of psychedelic substances in Hospice and Palliative Care. Progress in Palliative Care, 30, 1, 1-3. https://doi.org/10.1080/09699260.2022.2001140

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