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O MDMA pode ser o primeiro psicodélico aliado à psicologia clínica

Atualizado: 14 de ago. de 2022




Por Flávia Zacouteguy Boos, MS.



 

Metilenodioximetanfetamina, ou MDMA, é uma droga psicotrópica sintética e atualmente ilegal. No Brasil, é popularmente conhecida como ecstasy ou “bala” e antigamente era chamada de “pílula do amor”. Ela foi sintetizada pela primeira vez em 1912 na empresa farmacêutica Merck, tornou-se popular em festas de música eletrônica - as raves - na década de 1980 e, em acordo internacional realizado pela Comissão de Entorpecentes das Nações Unidas, foi classificada em 1986 como uma substância com potencial de abuso e dependência, sem utilidade médica, fazendo com que o MDMA se tornasse proibido. A história do MDMA é curiosa, pois de uma droga amplamente proibida há mais de 30 anos, ela passa a ser reconhecida como uma possível terapia inovadora na clínica psiquiátrica para tratar o Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT).


Diversos comprimidos de MDMA coloridos.

Comprimidos de MDMA, também conhecido como ecstasy ou “bala”.



Parte das pessoas que passam por situações altamente traumáticas, como abuso sexual - tão comum no Brasil principalmente em mulheres -, crimes violentos ou guerras, desenvolvem TEPT. Essas pessoas formam uma memória extremamente forte do evento, a revivem com frequência e evitam situações no dia a dia que lembrem o trauma. Elas também podem apresentar distúrbios do sono, prejuízos cognitivos e outros transtornos psiquiátricos, como depressão e ansiedade, que podem levar à ideação suicida. Transtornos psiquiátricos, conhecidos também como transtornos mentais, não são facilmente tratados como as doenças que têm causas biológicas bem definidas, como por exemplo o diabetes. Dessa maneira, os tratamentos recomendados para o TEPT atualmente consistem em psicoterapia, uso de antidepressivos (os inibidores seletivos de serotonina) ou a combinação destes. Ainda assim, nem sempre esses tratamentos são efetivos para todos os pacientes e muitos continuam com alto sofrimento e baixa qualidade de vida.


Pesquisas com uso do MDMA associado à psicoterapia para pacientes com TEPT têm sido realizadas em diferentes países, como EUA, Canadá, Israel, Espanha, Suíça e Brasil, que também entrou nessa lista recentemente e já concluiu os testes com 3 pacientes (1) - um dos idealizadores do trabalho brasileiro é o neurocientista Eduardo Schenberg. O protocolo terapêutico foi desenvolvido pela Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (MAPS) dos EUA, que consiste em três sessões longas, chegando a 8h, sob efeito do MDMA acompanhadas por um psicólogo em ambiente acolhedor, em que os sinais vitais são monitorados por um médico e o paciente é encorajado a entrar em contato com suas memórias e emoções. Essas são precedidas por sessões de psicoterapia para estabelecer um vínculo com o profissional e esclarecer os efeitos da substância. A psicoterapia também ocorre entre e após a última sessão de MDMA para que o paciente consiga refletir e integrar a experiência.


Para analisar o efeito terapêutico da terapia assistida com MDMA de forma mais confiável e que sintetize evidências de diferentes ensaios clínicos, recentemente foi publicada uma metanálise para verificar a eficácia do MDMA em pacientes com sintomas crônicos de TEPT, duração entre 7 e 22 anos, que não tiveram sucesso com tratamentos anteriores (2). A metanálise reuniu cinco estudos conduzidos nos EUA, Espanha e Suíça, com um total de 106 pacientes, mulheres e homens. Surpreendentemente, os autores encontraram melhora ou desaparecimento dos sintomas do TEPT em 72% dos pacientes que receberam MDMA, em comparação a apenas 19% das pessoas que receberam placebo (pílula de farinha). Também viram que os efeitos positivos se mantiveram meses após o término do tratamento - os sintomas foram reavaliados até 2 ou 74 meses. Para se ter uma medida de comparação, alguns estudos apontam que menos de 50% dos pacientes com TEPT respondem aos tratamentos convencionais e isso mostra a relevância de se encontrar terapias inovadoras como a descrita neste texto.



Mas, afinal, como o MDMA pode servir como um remédio?


O MDMA é um psicodélico atípico também conhecido como um empatógeno, ou seja, que aumenta a empatia, com efeitos estimulantes que lembram os das anfetaminas, além de efeitos psicodélicos leves. Apesar de ainda não sabermos exatamente o porquê dessa substância tratar o transtorno, a ciência tem alguns palpites. O MDMA aumenta a liberação do hormônio ocitocina, que está associado a comportamentos sociais e à facilidade de estabelecer vínculos afetivos. Eleva também a liberação de alguns neurotransmissores - noradrenalina, dopamina e principalmente a serotonina -, que estão associados aos efeitos de bem estar emocional e euforia da substância. Ainda, reduz a atividade de uma região no cérebro envolvida com medo e ansiedade, a amígdala (não a que está envolvida com amigdalite na garganta), e facilita processos de memória que reduzem o medo associado aos estímulos vinculados ao trauma.


Em conjunto, parece que a terapia com MDMA facilita o estabelecimento de confiança e vínculo com o terapeuta, e permite que a pessoa reviva a experiência traumática em um estado emocional positivo que favoreça insights e uma releitura terapêutica do trauma. Mas atenção: não é porque o MDMA tem potencial terapêutico que as pessoas podem se beneficiar tomando o que é vendido como MDMA por aí. Primeiro, porque em muitos comprimidos ou cristais vendidos clandestinamente como ectasy/MDMA, encontra-se uma série de outros aditivos, por vezes substâncias mais tóxicas do que o próprio MDMA. Segundo, porque o MDMA, dependendo da dose e de sua pureza, pode trazer complicações para quem o consome. E, por último, muito além da própria substância e da dose, o efeito terapêutico é decorrente da tríade substância-contexto-indivíduo. Sendo assim, o sucesso da terapia assistida com MDMA, no caso do TEPT, parece envolver o acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico antes, durante e depois das sessões com a substância.


Mulher em terapia com MDMA, acompanhada por dois terapeutas. Um homem e uma mulher.

Estudos indicam que o MDMA favorece o estabelecimento de confiança e vínculo com o terapeuta, facilitando o tratamento (Imagem: Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies).



A terapia é promissora e está em última fase de testes clínicos nos EUA, tem se mostrado segura e com efeitos duradouros em apenas poucas sessões. Em agosto deste ano, executivos do Vale do Silício e Wall Street doaram 30 milhões para as pesquisas com MDMA e estima-se que em 2023 o tratamento possa ser autorizado nos EUA pela Food and Drug Administration (FDA). Apesar da quetamina ter sido o primeiro psicodélico a ser aprovado como medicamento para tratar a depressão, os efeitos terapêuticos do MDMA parecem ser devidos a alterações na consciência em ambiente psicoterapêutico. Embora por aqui ainda não haja notícias de aprovação da terapia assistida com MDMA, a renascença da ciência psicodélica - ou revolução psicodélica, como alguns autores chamam - para aliviar os males psíquicos está em curso e o MDMA é um dos protagonistas dessa história.


 

Referências


(1) Jardim AV et al. (2020). 3,4-methylenedioxymethamphetamine (MDMA)-assisted psychotherapy for victims of sexual abuse with severe post-traumatic stress disorder: an open label pilot study in Brazil. Brazilian Journal of Psychiatry. Doi: https://doi.org/10.1590/1516-4446-2020-0980.


(2) Bahji, A et al. (2020). Efficacy of 3,4-methylenedioxymethamphetamine (MDMA)-assisted psychotherapy for posttraumatic stress disorder: A systematic review and meta-analysis. Progress in Neuro-Psychopharmacology and Biological Psychiatry. 96: 1-15. Doi: https://doi.org/10.1016/j.pnpbp.2019.109735.


Thal, S & Lommen, MJJ (2018). Current Perspective on MDMA-Assisted Psychotherapy for Posttraumatic Stress Disorder. Journal of Contemporary Psychotherapy. 48: 99–108. Doi: https://doi.org/10.1007/s10879-017-9379-2.

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