Por Luis Felipe Valêncio, MS.
Psicodélicos enquanto ferramentas
Seja nas pesquisas biomédicas sobre o potencial terapêutico das substâncias psicodélicas iniciadas nos anos 30, ou na utilização social pela contracultura dos anos 60, os efeitos provocados pelos psicodélicos inspiraram debates acalorados sobre a segurança desta via de alteração da consciência. A experiência psicodélica é frequentemente descrita, em diferentes contextos, como intensa, profunda e transformadora. Com efeito, é razoável imaginar que a intensidade destas experiências desperte algum grau de preocupação de agências regulatórias e da opinião pública.
Em um artigo publicado na revista científica The International Journal of Drug Policy, Kenneth W. Tupper (Tupper, 2006), professor da University of British Columbia (Canadá), trata sobre a maximização de benefícios e a redução de danos no contexto da globalização do uso da ayahuasca (bebida psicodélica de origem indígena). Neste trabalho, o autor faz uma metáfora das substâncias psicoativas enquanto “ferramentas”, em contraposição à metáfora dominante e bastante corrente das drogas enquanto “agentes malévolos”. Segundo o autor, considerá-las ferramentas nos permite ter uma visão mais realista sobre os potenciais benefícios e riscos, de acordo com quem usa, em que contexto, e com qual/quais propósito(s).
Os modelos concebidos e escolhidos por nós para lidarmos com o fenômeno do uso de substâncias produzem consequências pragmáticas, sejam elas pertencentes aos contextos social, terapêutico, religioso, artístico, etc. Conceber os psicoativos enquanto “agentes malévolos” carrega consigo a ideia de que elas possuem somente propriedades danosas e que impactam sempre negativamente a vida das pessoas. Por outro lado, conceber as substâncias psicoativas – incluindo as substâncias psicodélicas – enquanto ferramentas, possibilita com que outros elementos contextuais, talvez tão importantes quanto as substâncias, possam ser incluídos para se avaliar os benefícios e danos potenciais da experiência psicodélica, gerando também a necessidade de responder à pergunta: quais usos buscamos com estas ferramentas?
“Cura gay” e o passado da ciência psicodélica
No ano de 2018, compus a equipe de um curso cuja programação era voltada para as perspectivas interdisciplinares da ayahuasca, realizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) pelo laboratório ICARO (Cooperação Interdisciplinar para a Pesquisa e Extensão da Ayahuasca). Na atividade que desenvolvi em conjunto com Camis Benedito, que pesquisou gênero no Santo Daime (religião ayahuasqueira brasileira), buscávamos abordar as escassas pesquisas sobre diversidade de gênero e sexualidade nos contextos de utilização da ayahuasca. Foi neste período que conheci o trabalho “Os efeitos da participação em rituais com ayahuasca na identidade gay e lésbica” [“The effects of ayahuasca ritual participation on gay and lesbian identity”], de autoria da psicóloga norte-americana Clancy Cavnar (Cavnar, 2014).
A psicóloga norte-americana Clancy Cavnar, e seu artigo "Os efeitos da participação em rituais com ayahuasca na identidade gay e lésbica".
A autora aborda a experiência de homossexuais que participaram de cerimônias com ayahuasca e analisa os efeitos dessa experiência na percepção de identidade destes participantes. Neste trabalho pioneiro, Cavnar também descreve que algumas substâncias psicodélicas (especialmente o LSD e o cacto peiote) já foram utilizadas na tentativa de “curar” / “tratar” / “reverter” a orientação sexual de homossexuais em estudos realizados em sua maioria nos anos 60, antes da proibição destas substâncias e da interrupção das pesquisas com psicodélicos. A autora tratou em profundidade deste assunto em um texto em inglês publicado em 2018 no site do Instituto Chacruna - o qual vem desenvolvendo atividades diversas para divulgar o envolvimento histórico e as contribuições destas minorias a este campo do conhecimento, e debatendo a questão do acesso destes grupos aos usos terapêuticos do uso dos psicodélicos. Estas publicações apresentadas por Cavnar são registros históricos de como a questão da diversidade sexual e de identidade de gênero foi abordada nestas pesquisas realizadas no passado, e provocam reflexões sobre o fazer científico, os danos causados aos participantes e o contexto social e histórico que possibilitou com que essas pesquisas fossem conduzidas. Estes estudos serão apresentados a seguir.
Em 1962, A. Joyce Martin (Martin, 1962) relatou ter administrado 50µg de LSD para 12 homens homossexuais. O objetivo da autora com o uso da substância no processo terapêutico era o de estabelecer uma relação terapêutica positiva com os pacientes, para que eles acessassem momentos importantes de seus estados de desenvolvimento psíquico. Para participar do estudo, era necessário relatar o desejo de deixar de ser homossexual. Segundo Martin, após o tratamento, sete destes homens assumiram uma vida heterossexual. Sobre os outros cinco participantes que continuaram declarando-se gays, a autora descreve que alguns se estabilizaram com um só parceiro do mesmo sexo – os quais antes do tratamento mantinham relações com vários parceiros – e outros buscaram se envolver em discussões políticas, pintura e até mesmo buscando encontrar-se com mulheres em grupos de discussões.
Alguns anos mais tarde, em 1966, R. E. L. Masters e Jean Houston (Masters & Houston, 1966) relataram o caso de um homem, casado com uma mulher, que comunicou que sentia atração por homens e que buscava relações fora do casamento. Diferente da pesquisa anterior, o participante declarou não ter uma “motivação consciente aparente” para mudar o seu “padrão de comportamento”. O homem relatou buscar durante muitos momentos de sua vida respostas sobre sua identidade sexual. Após a experiência com LSD, o participante informou sentir um aumento na autoestima e uma melhoria da performance sexual com sua esposa. O participante disse que passou a sentir menos desejo de olhar para pessoas do gênero masculino quando estava na rua e também ter tido menos encontros com homens. Ainda, comunicou sentir um aumento na atração por mulheres, mas após aproximadamente seis semanas sentiu que os efeitos estavam sumindo. Ao discutir os fenômenos observados, os autores afirmam que os efeitos frequentes após a sessão são o aumento na agressividade, melhoria da autoconfiança e autoestima. Também descrevem que há “(...) um notável engrossamento da voz em alguns casos. Ainda, os gestos podem se tornar mais vigorosos, a postura mais ereta e os movimentos geralmente mais decisivos e, em alguns casos, mais ‘masculinos’”.
P. G. Stafford e B. H. Golightly (Stafford & Golightly, 1967), na sessão denominada “Frigidez, Impotência, Homossexualidade e Perversão” do livro “The Problem-Solving Psychedelic”, de 1967, argumentam que a experiência da terapia psicodélica com LSD poderia permitir que homossexuais se casassem, se ajustassem a um casamento existente ou que decidissem que são essencialmente homossexuais e que gostariam de se manter assim. Dois anos mais tarde, em 1969, Richard Alpert (Alpert, 1969), também conhecido como “Ram Dass”, aborda os efeitos do LSD na “sexualidade patológica” e na “sexualidade normal”. Alpert descreve o caso de um homem de 38 anos que se considerava bissexual, mas que o contatou por carta relatando que era homossexual e que gostaria de deixar de ser. O homem disse: “Ouvi falar sobre o LSD e acho que pode me ajudar. Você trabalharia comigo?”. Durante a experiência com o LSD, o homem relatou experienciar “o quão biologicamente óbvia a heterossexualidade era”. Nas sessões conduzidas com ele, foram realizadas atividades como a projeção de algumas pinturas famosas de mulheres, como a Mona Lisa de Leonardo Da Vinci, e até mesmo contou com a participação de uma mulher (amiga do participante), a qual não consumiu a substância e se envolveu em uma relação sexual com o participante durante a sessão. Um ano após o tratamento, o participante relatou estar morando com uma mulher há oito meses, com a qual tinha relações sexuais com bastante frequência. Por fim, o participante contou que teve algumas relações homossexuais durante esse período, mas que fez isso para testar se as mudanças recentes eram reais ou não.
Stanislav Grof (Grof, 2000) também tratou pessoas homossexuais com LSD. Sobre a homossexualidade masculina, o autor argumentou haver um trauma de nascimento, explicado pela psicanálise como um complexo de castração, responsável por produzir o medo dos órgãos genitais femininos (representado pela imagem da vagina dentada), o que explicaria o desinteresse de homens gays pelo sexo com mulheres. Já em relação à homossexualidade feminina, Grof sustentou que mulheres lésbicas manifestam um desejo não satisfeito de contato próximo entre mãe e filha durante a primeira infância, e que também podem apresentar memórias traumáticas relacionadas ao objeto sexual masculino.
Ferir sob o pretexto de curar
Eu me lembro do espanto e desconforto que a descoberta deste passado problemático da história da ciência psicodélica causou em mim, um homem bissexual e pesquisador em formação (aluno de pós-graduação) no campo de estudos sobre psicodélicos. A leitura dos trabalhos mencionados pela autora provocaram uma reflexão sobre as substâncias psicodélicas enquanto ferramentas, sobre os propósitos e justificativas de investigar seus usos curativos, e a importância de não patologizar (transformar em doença) a vida e produzir danos às pessoas, em estados alterados de consciência ou não. Em outras palavras, tornou evidente a importância de compreendermos os processos de adoecimento-cuidado-saúde no contexto dos tratamentos com substâncias psicodélicas, para que não venhamos a sustentar injustiças e violências contra grupos marginalizados e patologizados.
As chamadas “terapias de conversão” ou “cura gay” são propostas que clamam a possibilidade de mudar a orientação sexual de uma pessoa homossexual por meio de psicoterapia e conversão religiosa, tornando-a ao final do processo uma pessoa heterossexual. Nas palavras de Victor Madrigal-Borloz, relator sobre orientação sexual e identidade de gênero da Organização das Nações Unidas (ONU): “(...) ações para submeter pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais a práticas de ‘terapia de conversão’ são, por sua própria natureza, degradantes, desumanas e cruéis e cria um risco significativo de tortura” (Chade, 2020). Além disso, vale mencionar que o olhar patologizante sobre a diversidade sexual e de gênero é rechaçado por diversos organismos de saúde nacionais e internacionais, como é o caso da Organização Mundial da Saúde (OMS), que retirou a homossexualidade da lista de classificação de doenças em maio de 1990, ou do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que decidiu em 1999 que os profissionais pertencentes à esta ordem profissional não poderiam estigmatizar, patologizar ou tratar as homossexualidades.
Os usos da ferramenta
Estas “terapias de conversão” realizadas com o uso de psicodélicos são um claro exemplo de como atividades danosas e discriminatórias foram promovidas por práticas alegadamente científicas. Se naquele momento estas “terapias” ressoavam com a visão social predominante, que patologizava a homossexualidade, hoje observamos que as lutas travadas pelos movimentos sociais produziram mudanças e não é difícil imaginar que uma pesquisa com o objetivo de modificar a sexualidade de alguém encontraria veemente rechaço da maioria dos pesquisadores, instituições de pesquisa e comitês de ética em pesquisa. Contudo, até os dias de hoje, forças políticas (sobretudo religiosas) buscam retomar as anacrônicas práticas de “reorientação sexual”, representando uma vulneração, isto é, a materialização da vulnerabilidade enquanto dano, aos direitos das populações LGBTQIA+.
Refletir sobre os usos pretendidos para as substâncias psicodélicas é importante para que novas ou antigas violências não venham a ser praticadas no contexto das comunidades relacionadas ao uso destas ferramentas, sejam elas acadêmicas, religiosas ou quaisquer outras. Desta maneira, trabalhos como o de Clancy Cavnar ajudam a construir uma ciência psicodélica sensível a esta temática e também contribuem para que conheçamos as especificidades de cuidado (e de demais usos) das populações LGBTQIA+, para que os psicodélicos também sejam uma ferramenta disponível e produtora de aceitação, saúde e qualidade de vida para estas pessoas.
Referências
Tupper, K. W. (2008). The globalization of ayahuasca: harm reduction or benefit maximization?. International Journal of Drug Policy, 19(4), 297-303.
Cavnar, C. (2014). The effects of ayahuasca ritual participation on gay and lesbian identity. Journal of Psychoactive Drugs, 46(3), 252-260.
Martin, A. J. (1962). The Treatment of Twelve Male Homosexuals with 'LSD' (followed by a Detailed Account of One of them who was a Psychopathic Personality). Acta Psychotherapeutica et Psychosomatica, 394-402.
Masters, R. E., & Houston, J. (1966). The varieties of psychedelic experience (Vol. 9289). New York: Holt, Rinehart and Winston.
Stafford, P. & Golightly, B. (1967). LSD: The Problem-Solving Psychedelic. New York: Avon.
Alpert, R. (1969). LSD and sexuality. The Psychedelic Review, 10, 21-24.
Grof, S. (2000). The Psychology of the Future: Lessons from Modern Consciousness Research. Albany, NY: State University of New York Press.
Chade, J., (2020). ONU propõe banir "cura gay" no mundo e alerta para "risco de tortura". [online] Noticias.uol.com.br. Available at: <https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/06/14/onu-propoe-banir-cura-gay-no-mundo-e-alerta-para-risco-de-tortura.htm> [Accessed 31 January 2021].
Faltou colocar nas referências essa "Dois anos mais tarde, em 1969, Richard Alpert (Alpert, 1969), também conhecido como “Ram Dass” Se puder comentar/colocar. Fiquei interessado em saber em que obra O Ram Dass fala sobre essa atuação dele