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  • Foto do escritorNathan Fernandes

Psicodélicos na mídia: por que parte da imprensa prefere as notícias ruins



Resumo: O texto apresenta uma reflexão sobre a cobertura midiática de psicodélicos, usando como referência o caso do “sapo alucinógeno”, e uma pesquisa da Universidade de Michigan sobre a percepção pública dos psicodélicos na mídia. A imprensa tradicional é questionada por reforçar estigmas e pânico moral em relação a essas substâncias, em detrimento de noticiar estudos científicos e benefícios associados a elas.


 

Nada de bom pode vir depois da manchete: “Uma droga alucinógena virou notícia essa semana, por causa de relatos de surtos psicóticos e crises de pânico em usuários.” A chamada — anunciada pela jornalista Maria Júlia Coutinho, em 2023, no Fantástico, um dos programas semanais de maior audiência do Brasil — falava sobre o uso do sapo Bufo alvarius em contextos neoxamânicos. Aos ouvidos mais sensíveis, ela ecoava também as notícias sensacionalistas sobre psicodélicos que povoam os noticiários e os imaginários há mais de sessenta anos.


O caso ganhou destaque na televisão depois de percorrer a internet como reportagem do portal G1. No texto, intitulado “Participantes de rituais acusam grupo xamânico de aplicar veneno de sapo proibido no Brasil sem aviso”, a pessoa que lê é apresentada ao caso de um grupo neoxamânico que realizava experiências com a secreção psicodélica extraída do sapo originário do deserto de Sonora, no México. Além da substância ser proibida, algumas pessoas que buscavam o uso para lidar melhor com suas questões emocionais acabaram desenvolvendo sequelas psiquiátricas.


O grupo admitiu o erro. “A palavra seria uma ‘falha’ no acompanhamento desse processo”, disse a advogada Cecília Galício, no Fantástico. Não é preciso destacar, portanto, a negligência ao admitir pessoas que talvez nem pudessem usar psicodélicos ou a imprudência de anunciar o uso de substâncias ilegais na internet. Ainda assim, da mesma forma que é possível questionar a conduta do instituto, também se pode refletir sobre as escolhas editoriais que levam veículos da imprensa tradicional a reforçar estigmas contra temas já intensamente estigmatizados, como os psicodélicos.


Abertura da reportagem no Fantástico (Fonte: Fantástico).



A criação desse estigma remonta aos Estados Unidos, da década de 1960, quando, estimulada pelo governo, a imprensa ajudou a popularizar relatos de acidentes e mortes ocorridas após o uso de substâncias psicoativas. Os relatos, em muitos casos, eram falsos ou imprecisos, mas suficientes para criar um ambiente de medo irracional (1). Curiosamente, os mesmos compostos que estimulavam os jovens a questionar a ordem social e que enfraqueciam sua disposição para lutar na guerra do Vietnã, eram apontados pelo governo como perigosos — ainda que as pesquisas científicas da época não demonstrassem isso. Talvez, porque, como lembrou o psicofarmacologista Roland Griffiths (2), “o grau de autoridade que resulta da experiência mística primária pode ser ameaçador para a estrutura hierárquica existente”.


Em 1968, Richard Nixon se elegeu como presidente dos EUA prometendo restaurar a ordem no país, e apontando o uso de drogas como um dos principais inimigos. Em 1970, ele incumbiu seu principal conselheiro, John Ehrlichman, de utilizar “ainda mais a televisão na luta contra o abuso de drogas” (3), mostrando o importante papel da imprensa na criação do pânico moral, que se espalhou pelo mundo de forma exponencial com a instauração formal de uma política de “Guerra às Drogas”, em 1971.


Richard Nixon, em 1971, dicursando sobre a política de “Guerra às Drogas” (Fonte: Richard Nixon Foundation).



Em uma entrevista concedida à Harper's Magazine (4), em 1994, Ehrlichman deixou claro que essa proibição nunca foi pautada pela ciência. "Com relação ao início da guerra contra as drogas no início dos anos 1970, você quer saber o que realmente foi isso? A campanha de Nixon em 1968, e a Casa Branca depois disso, tiveram dois inimigos: pessoas negras e a esquerda antiguerra”, explicou o conselheiro. “Sabíamos que não podíamos tornar ilegal ser contra a guerra ou negros, mas ao conseguir que o público associasse os hippies com maconha e os negros com heroína, e depois criminalizando ambos fortemente, poderíamos despedaçar essas comunidades. Nós poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, dividir suas reuniões e difamar noite após noite no noticiário. Sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim."


O pânico moral é constantemente reforçado pelo uso de palavras como "drogas" e "alucinógenos" para descrever as substâncias psicodélicas. Embora LSD, cogumelos, ayahuasca e outros compostos possam ser tecnicamente classificados como "drogas", pela definição da Organização Mundial da Saúde, o termo carrega uma conotação negativa associada à violência e à destruição, que não representa o potencial de cura e promoção da saúde que essas substâncias podem oferecer. É importante destacar também que, apesar dos psicodélicos causarem alterações na consciência, as pessoas, sob seus efeitos, têm a capacidade de distinguir entre o que é real e o que é fruto da imaginação, ao contrário do que ocorre em uma "alucinação".


É verdade que as reportagens do Fantástico e do G1 trazem fontes confiáveis e oferecem contraponto. Da perspectiva jornalística, são relevantes. A explicação dada pelo jornalista Álvaro Pereira Jr. sobre o funcionamento dos psicodélicos no cérebro, por exemplo, é uma referência na forma de fazer divulgação científica. Mas, no país que foi classificado em terceiro lugar num ranking de impacto científico no campo de estudos com psicodélicos (atrás somente dos EUA e Reino Unido) (5), por que o interesse editorial e o ângulo de abordagem recaem, na maior parte das vezes, sobre o desfortúnio?


O jornalista Álvaro Pereira Jr. explicando o funcionamento dos psicodélicos no cérebro (Fonte: Fantástico).



Nenhum desses veículos deu destaque para o primeiro estudo feito no Brasil com LSD em seres humanos desde os anos 1960, ou para os efeitos benéficos de substâncias como a psilocibina em pessoas com doenças graves, ou mesmo para a pesquisa pioneira6 feita por brasileiros que mostrou que o 5-Meo-DMT (presente no Bufo alvarius) mexe com mais de mil proteínas no tecido cerebral humano. No entanto, as tragédias, principalmente aquelas ocorridas em um contexto “exótico” para o senso comum, parecem ter lugar garantido.



Como se informam os psiconautas


Casos como esse reforçam os resultados encontrados por um levantamento publicado no Journal of Psychoactive Drugs (7), pelo pesquisador Daniel Kruger, da Universidade de Michigan, e sua equipe, em 2023. No trabalho, que avaliou a forma como pessoas que usam psicodélicos buscam informações sobre o tema, os pesquisadores mostraram que a cobertura da imprensa tradicional é percebida como imprecisa para a maioria dos entrevistados.


Segundo o levantamento, 66% dos participantes acham que a mídia subestima os benefícios dos psicodélicos, enquanto 57% acreditam que os veículos superestimam os riscos, sendo que 64% acreditam que a imprensa distingue substâncias diferentes de maneira imprecisa. “Os participantes que experimentaram uma maior variedade de psicodélicos foram mais propensos a relatar imprecisões [nos efeitos subjetivos] percebidas na cobertura da mídia popular sobre psicodélicos”, escreveram os pesquisadores, no artigo.


Segundo o levantamento realizado pelo pesquisador Daniel Kruger, 66% dos participantes acham que a mídia subestima os benefícios dos psicodélicos, enquanto 57% acreditam que os veículos superestimam os riscos.



Ainda de acordo com a pesquisa, 79% das pessoas que responderam ao questionário afirmam que suas principais fontes de informação são suas próprias experiências. A maioria também afirmou buscar informações em sites da Internet (61%), amigos (61%), fóruns de discussão na internet (57%), livros (57%) e artigos em revistas científicas revisadas por pares (54%) — o que pode indicar o nicho do qual os participantes da pesquisa fazem parte. Apenas 25% confiam nas empresas que promovem pesquisas com psicodélicos e 4% buscam informações com órgãos de saúde do governo.


Como apontam os autores, esse padrão, provavelmente, está relacionado com a política proibicionista da Guerra às Drogas nos Estados Unidos. “Isso tem contribuído para o direcionamento das pessoas a ambientes clandestinos para a troca de informações sobre substâncias psicoativas, como orientações de uso e redução de danos”, apontaram. “A desconfiança no governo é outra consequência provável da posição histórica do governo sobre essas substâncias, devido ao que é percebido como representações enganosas dos riscos e benefícios dos psicodélicos. A desconfiança nas empresas farmacêuticas também pode estar relacionada à atual ‘crise dos opioides’ nos EUA.”


Embora não seja possível extrapolar os dados diretamente para a realidade brasileira, devido à maioria dos participantes serem classificados como brancos e residentes do estado norte-americano de Michigan, é interessante notar algumas semelhanças com comportamentos observados aqui.


Ao analisar reportagens sobre ayahuasca publicadas na Folha de S. Paulo e no G1, entre 2006 e 2019, a pesquisadora Jussara Aparecida Santos de Assis, da PUC-Minas, chegou a conclusões parecidas. “Os meios de comunicação reafirmam os estigmas nos grupos e indivíduos que consomem a ayahuasca e cristalizam um quadro ideólogo de difícil desmontagem. Principalmente, quando se fala nos grupos indígenas” (8), escreveu Assis, reforçando um possível otimismo. “Compreendemos que os enquadramentos midiáticos são móveis, flexíveis e estão em constante desenvolvimento ao longo do tempo. Sendo, portanto, possível a reivindicação por novos modos de representação”.


Nesse cenário de desenvolvimento de novas pesquisas e benefícios associados aos psicodélicos, o sensacionalismo da imprensa e o desequilíbrio nas abordagens atrapalham o esforço de construção de novos imaginários possíveis para essas substâncias. Ao mesmo tempo, a própria imprensa é quem tem a maior capacidade para subverter isso.


“A mídia popular tem desempenhado um papel central na propagação de mensagens positivas sobre o ressurgimento dos psicodélicos”, escreveram os pesquisadores da Universidade de Michigan, “mas ainda pode seguir a tendência da cobertura dos veículos tradicionais de se concentrar nos resultados negativos dos usos de substâncias ilícitas.” Com isso, construir uma percepção dos psicodélicos que esteja mais alinhada à ciência e menos aos estigmas, parece depender de uma harmonia entre a conscientização do público geral e a conscientização dos próprios editores e tomadores de decisões de dentro das redações.



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Referências


  1. Stephen, S. (2015) Acid Hype: American News Media and the Psychedelic Experience. Illinois: University of Illinois Press.

  2. ² Pollan, M. (2018). Como Mudar Sua Mente: O que a nova ciência das substâncias psicodélicas pode nos ensinar sobre consciência, morte, vícios, depressão e transcendência. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca.

  3. Epstein, E. J. (1990) Agency of Fear: Opiates and Political Power in America. New York: Verso.

  4. 4 Baum, D. (1994) Legalize It All: How to win the war on drugs. Harper’s Magazine. Acessado em 6 de agosto de 2023, em: https://harpers.org/archive/2016/04/legalize-it-all/

  5. 5 Lawrence, D.W.; Sharma, B.; Griffiths, R.R.; Carhart-Harris, R.; Trends in the Top-Cited Articles on Classic Psychedelics. J. Psychoactive Drugs. 2021 Sep-Oct;53(4):283-298.

  6. 6 Dakic, V.; Minardi Nascimento, J.; Costa Sartore, R.; Maciel, R.M.; de Araujo, D.B.; Ribeiro, S.; Martins-de-Souza, D.; Rehen, S.K. Short term changes in the proteome of human cerebral organoids induced by 5-MeO-DMT. Sci Rep. 2017 Oct 9;7(1):12863.

  7. 7 Kruger, D.J.; Enghoff, O.; Herberholz, M.; Barron, J.; Boehnke, K.F. "How Do I Learn More About this?": Utilization and Trust of Psychedelic Information Sources Among People Naturalistically Using Psychedelics. J Psychoactive Drugs. 2023 Apr 20:1-9.

  8. 8 Assis, J.A.S. (2021) Representações jornalísticas da ayahuasca: análise de matérias do Jornal Folha de S. Paulo e Portal de Notícias G1. PUC-Minas.

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