Resumo: O artigo é uma resenha do livro "Visões Multidisciplinares da Ayahuasca", uma produção do grupo ICARO, da Unicamp. Dividido em três partes – Natureza e Humanidades, Saúde Mental e Pesquisas Experimentais – ele explora aspectos botânicos, etnobotânicos, socioantropológicos, biomédicos e neurocientíficos da ayahuasca. A biomédica Joice Cruz explica que a obra combina pesquisa acadêmica e debates socio-políticos, destacando a regulamentação pioneira do uso religioso da ayahuasca no Brasil, mas reconhece a necessidade de incluir mais narrativas indígenas.
O livro Visões Multidisciplinares da Ayahuasca é fruto das ações da Cooperação Interdisciplinar para Pesquisa e Extensão da Ayahuasca (ICARO, sigla para o nome em inglês, Interdisciplinary Cooperation for Ayahuasca Research and Outreach), um grupo de pesquisa nascido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com o propósito de fomentar e articular debates e produções de pesquisa e extensão envolvendo substâncias psicodélicas, com enfoque principal na ayahuasca. Nessa jornada, o grupo vem há anos semeando ideias sobre os saberes envolvidos na temática da ayahuasca. Entre os anos de 2017 a 2019, pesquisadores do ICARO, juntamente com colaborações externas, ministraram um curso voltado ao público internacional, que foi adaptado para um curso de extensão online em 2021, em virtude da pandemia da COVID-19.
Nesse ponto, as encruzilhadas da vida me levaram ao encontro do ICARO, sendo bolsista no curso “Perspectivas Interdisciplinares da Ayahuasca” e depois passando a integrar o time de pesquisadores do grupo. Em 2022, alguns integrantes do grupo chegaram a cruzar o Atlântico para executar uma versão abreviada do curso na Universidade de Tartu, na Estônia. Portanto, podemos dizer que essa obra germinou a partir da confluência de saberes múltiplos e diversos, e hoje floresce em um livro rico que explora, apesar de não extinguir, visões multidisciplinares através das quais é possível abordar a ayahuasca.
O livro é dividido em três partes: Ayahuasca, Natureza e Humanidades; Ayahuasca e Saúde Mental; e Ayahuasca e Pesquisas Experimentais; que se alinham a três grandes áreas de conhecimento: ciências humanas, ciências da saúde e ciências biológicas. O caráter acadêmico científico da obra pode ser apreciado em cursos de graduação/pós-graduação ou como referencial para projetos científicos, mas também se dispõe a alcançar profissionais da saúde, das ciências sociais e até mesmo ser fonte de informações que se somam ao cenário de debate sócio-político acerca da ayahuasca. Ponto especialmente relevante no contexto brasileiro, em que apesar da guerra às drogas persistir enraizada nas políticas públicas, o país estabeleceu de forma pioneira a regulamentação do uso da ayahuasca em rituais religiosos através da resolução 01 de janeiro de 2010 do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (CONAD) (Labate e Feeney, 2011).
Em “Ayahuasca, Natureza e Humanidades”, a obra discorre sobre as características botânicas das plantas que constituem a ayahuasca e sobre as relações do ser humano com a bebida. Camila Dias Lourenço dos Santos e Ricardo Monteles trazem um contexto etnobotânico das plantas Psychotria viridis e Banisteriopsis caapi e as definições identitárias da bebida produzida por essas. Uma análise crítica do contexto contemporâneo propõe o debate da sustentabilidade da ayahuasca em paralelo ao avanço de setores do mercado (turismo, indústria farmacêutica, etc). Sandra Lucia Goulart nos conta em detalhes as histórias de fundação das religiões ayahuasqueiras brasileiras, os traços antropológicos marcantes dessas culturas e o comportamento sócio-político desses grupos, inclusive sobre a internacionalização da bebida. Seguindo as reflexões sobre o papel da bebida nesses variados contextos de uso, Luis Felipe Siqueira Valêncio nos apresenta a bioética da ayahuasca, guiada pela noção de cuidado e presente em contextos religiosos ou em outros, como o acadêmico-científico. Finalizando a seção, temos o capítulo escrito por Nathan Fernandes, que nos abre os olhos sobre o papel central da mídia na percepção pública – sócio-política – da ayahuasca.
Na segunda parte do livro, a ayahuasca é debatida na esfera da saúde. Lucas Maia e Dimitri Daldegan-Bueno elencam as evidências biomédicas mais recentes sobre efeitos potenciais da ayahuasca no sofrimento físico e mental, com entendimento crítico sobre as limitações e lacunas que esses estudos apresentam. Fabio Carezzato propõe reflexões sobre o uso problemático de drogas, abordando as relações da pessoa com a substância e o ambiente (spoiler: a Redução de Danos é central no cuidado aos usuários e na elaboração de vias de intervenção, onde a ayahuasca poderia atuar). Nos capítulos seguintes, Dimitri Daldegan-Bueno e Alexandre Pontual discorrem sobre os métodos psicométricos de mensuração dos efeitos subjetivos da ayahuasca, ou seja, as formas empíricas de estudo dos fenômenos subjetivos presentes na experiência com a bebida. As análises psicanalíticas, segundo as abordagens de Winnicott e de Lacan, sobre os fenômenos da experiência com ayahuasca são apresentadas por Daniel Kazahaya e Rodolfo Olivieri.
A seção final se inicia com o texto de Sueli Netto sobre a utilização de modelos animais em pesquisas com ayahuasca e suas limitações. A seguir, Dimitri Daldegan-Bueno e Lucas Maia, juntamente com Natália Simionato e Vanessa Favaro, apresentam evidências pré-clínicas acerca da ayahuasca – uma revisão de 32 artigos publicados até 2022. No contexto de experimentação com humanos, Isabel Wießner fala sobre os achados em neurociência sobre o que pode estar ocorrendo no cérebro durante os efeitos da ayahuasca. Por fim, mas tão importante quanto, Emerson Andrade dos Santos e Alessandra Sussulini descrevem as contribuições do campo da metabolômica, ou seja, do estudo de pequenas moléculas, chamadas de metabólitos, para o entendimento dos mecanismos fisiológicos e bioquímicos associados à ayahuasca.
Sem dúvida, o livro explora múltiplas visões sobre a ayahuasca e se soma ao escopo relevante de produções brasileiras no cenário acadêmico-científico acerca da bebida — apesar de não presumir que o tema se esgote, afinal abordagens outras não apresentadas aqui, como autorias indígenas e as cosmovisões para além de modelos euro-referenciados do uso da ayahuasca, por exemplo, podem enriquecer muito o entendimento sobre a bebida. As limitações da obra demandam que essas narrativas sejam apoiadas e incluídas em projetos futuros. Já nos dizia o professor e militante quilombola Nego Bispo: “Quando você compartilha o saber, o saber só cresce”.
Visões Multidisciplinares da Ayahuasca
Organização: Camila Dias, Lucas Oliveira Maia, Luis Felipe Valêncio e Luís Fernando Tófoli. Editora Unicamp.
Autora
Referências
Labate, B. C.; Feeney, K. O processo de regulamentação da ayahuasca no Brasil e na esfera internacional: desafios e implicações. Jornal Periferia, 3, n. 2, 2011.
Maia, L. O.; Dias, C.; Valêncio, L. F.; Tófoli, L. F. (org). Visões Multidisciplinares da Ayahuasca. Campinas – Editora da Unicamp, 2023.
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